Uma doutoranda do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) considerou que as organizações não-governamentais (ONG) tiveram uma atuação descoordenada, ineficaz e tardia no surto de Ébola na África Ocidental.
“Eu acabei por assistir (à atuação) de muitas organizações internacionais e nacionais no terreno, que tiveram uma resposta ineficaz em termos de combate ao Ébola”, disse à Lusa Charlotte Oliveira, doutoranda do instituto e uma das autoras de um artigo sobre o tema, que se centra no caso de Serra Leoa.
“Vertical interventions and system effects; have we learned anything from past experiences?” é o título do documento publicado no PanAfrican Medical Journal, a 07 de agosto.
Charlotte Oliveira, que é doutoranda em Políticas de Saúde e Desenvolvimento no IHMT e também trabalha como enfermeira em Lisboa, esteve na Serra Leoa (em dois períodos entre 2014 e 2015) e na República Democrática do Congo (também em 2014), a trabalhar junto da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF).
“As primeiras razões que levaram ao surgimento deste artigo foram exatamente pela minha experiência, por ter estado no terreno”, disse a doutoranda, que escreveu o artigo em conjunto com o professor da Universidade Nova de Lisboa Giuliano Russo, que é ainda membro do grupo Global Health and Tropical Medicine, do IHMT, em Lisboa.
A doutoranda sublinhou que no terreno as ações ocorreram de forma descoordenada, passando desde a sobreposição de atividades entre ONG, como várias destas a realizar a busca ativa de casos nas mesmas comunidades, por profissionais de saúde locais a acumular funções e acabarem por não conseguir dar resposta a tudo e por atividades de saúde primárias (vacinação, consulta materno-infantil, combate à malária) que deixaram de funcionar.
“Tudo foi direcionado para a epidemia de Ébola”, indicou.
Charlotte Oliveira sublinhou o facto de os sistemas de saúde, que anteriormente ao surto já eram frágeis, terem colapsado e que muitos profissionais de saúde, que já eram poucos em relação ao número de habitantes, terem morrido com a doença.
“As ONG não tinham recursos humanos disponíveis para atuar face a uma epidemia destas”, disse, acrescentando que foi preciso fazer recrutamento e formação de pessoal, sendo esse um processo que leva tempo e que acabou por “implicar na propagação da epidemia”.
Segundo a enfermeira, os próprios ministérios da Saúde locais “têm sistemas de vigilância epidemiológica muito fracos”.
“A partir do primeiro caso de Ébola, deveria ter sido criado um alerta nacional para risco de epidemia”, o que demorou muito tempo a ser feito, referiu Charlotte Oliveira.
“As comunidades locais não estavam recetivas para a toda a resposta que envolve uma epidemia de Ébola (nomeadamente o isolamento dos pacientes)”, disse, acrescentando que as culturas locais mantêm que os doentes devem ser socorridos e cuidados pelos familiares.
A enfermeira sublinhou a importância do envolvimento da comunidade, dos líderes destas mesmas comunidades, a vários níveis, para poder realizar um trabalho eficaz, no tratamento e vigilância do Ébola.
“Parece-me que será bastante viável haver uma capacidade de coordenação, por exemplo, por parte da Organização Mundial de Saúde” das diversas organizações e instituições diante de um quadro de epidemia como esta do Ébola, disse, referindo-se ao futuro.
Segundo a doutoranda, “estamos a falar também de preparação, de antecipação dos problemas, a OMS tem de saber de antemão quais os eventuais recursos disponíveis de resposta a uma determinada epidemia, por exemplo, e direcionar estes recursos disponíveis”.
“Penso que isso será fundamental para respostas mais eficazes e antecipadas. A questão aqui é a antecipação das respostas para se evitar chegar a ter uma epidemia como esta do Ébola, que afetou estes três países, os países vizinhos, e também a Europa e os Estados Unidos”, declarou.
“A OMS já reconheceu, em parte, que poderia ter feito melhor, e poderá fazê-lo”, adiantou.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou que vai criar um fundo de contingência emergencial de 100 milhões de dólares na sequência do surto do Ébola na África Ocidental, entre outros programas.
“Só vamos saber se isso passará do discurso para a prática quando realmente for necessário fazê-lo”, disse Charlotte Oliveira.
A epidemia de Ébola na África Ocidental, que teve início em dezembro de 2013 no sul da Guiné-Conacri, já fez mais de 11.300 mortos em 28.000 casos registados, num balanço muito elevado, segundo a OMS.
Texto da Agência Lusa
Para aceder ao estudo “Vertical interventions and system effects; have we learned anything from past experiences?”, clique aqui.