Numa época em que um dos maiores problemas mundiais se relaciona com os migrantes e as crises de refugiados, num contexto em que a pandemia de COVID-19 acentua as desigualdades, há quem no terreno nunca desista de ajudar na resposta humanitária a populações vítimas de conflitos armados e guerras, desastres naturais, epidemias e crises nutricionais.
No ano de 2022 estima-se que 274 milhões de pessoas vão precisar de ajuda humanitária, segundo as estimativas do Panorama Humanitário Mundial 2022, divulgado esta quinta-feira, 2 de dezembro, pelo escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, sigla em inglês). É um aumento de 17% face a 2021.
Uma avaliação que está muitas vezes sub-representada, na medida em que os cenários e projeções de risco no planeamento humanitário são em grande parte calculados com base em representações estáticas de crises humanitárias, em um determinado momento. “No entanto, em muitos contextos humanitários, o número de pessoas que precisam de assistência humanitária pode flutuar em escalas de tempo curtas como resultado de choques repentinos (por exemplo, a escalada dos conflitos armados) ou fenómenos ambientais sazonais (por exemplo, inundações), entre outros fatores”, alerta o portal de informação humanitária Relief Web.
Países como o Iémen e a Síria, devastados por guerras civis, o Afeganistão assolado por conflitos de diferentes grupos armados aliados à seca, a República Centro Africana atingida por rivalidades religiosas, étnicas e lutas de poder, o Sudão palco em Dafur de um conflito violento desde 2003, a Etiópia que viveu em 2020 o pior surto de gafanhotos do deserto em 25 anos agravando a crise alimentar encontram-se algumas das populações mais vulneráveis do globo.
Charlotte Oliveira, doutorada em Saúde Internacional pelo Instituto de Higiene e Medicina Tropical, da Universidade NOVA de Lisboa (IHTM NOVA), já esteve na Síria, Serra Leoa, Haiti, Índia, Níger, Angola, Moçambique e República Democrática do Congo (RDC) integrada numa equipa dos Médicos Sem Fronteiras em projetos relacionados com a desnutrição aguda infantil, epidemias, desastres naturais e conflito armado. Nesta entrevista, conta-nos algumas das suas mais importantes experiências no âmbito da ajuda humanitária.
Qual foi a experiência mais marcante que viveu até hoje no âmbito de uma missão humanitária?
Esta é uma das questões que me colocam muitas vezes, no entanto é uma das mais difíceis de responder. Ao longo destes últimos dez anos, fiz cerca de dez missões e foram dez experiências completamente diferentes e únicas.
A minha primeira missão foi no Haiti, pós-terramoto com uma epidemia de cólera. Nestes meses de terreno tive uma grande aprendizagem, foi o choque com uma realidade dura e com escassas condições de vida como a falta de acesso à saúde, à água, ao saneamento… É o confronto entre as estatísticas de mortalidade infantil que lemos e a realidade de realmente morrerem quatro crianças nas nossas mãos numa manhã de trabalho na pediatria, porque não temos os meios necessários para as salvar. Vidas que cá em Portugal seriam salvas. É uma sensação muito dura de injustiça e revolta. No entanto, há dias maravilhosos em que percebemos que realmente fazemos a diferença na vida de uma pessoa e basta ser uma pessoa para tudo voltar a fazer sentido.
Passados uns bons anos voei até à Síria…. Foi daquelas missões – que aconteça o que acontecer – não vou apagar nunca da minha memória. Estar a trabalhar num país com um conflito armado ativo, ao lado de equipas sírias que todos os dias regressavam às suas casas e dormiam rodeados de violência e insegurança, prestar cuidados a crianças com ferimentos de estilhaços de bombas é algo demasiado marcante. Por outro lado, trabalhar, conhecer, criar laços de amizades com estas equipas é muito enriquecedor. Estas pessoas têm uma capacidade de resiliência enorme, uma capacidade de ver o lado bom das coisas quando tudo está a ruir, uma capacidade de seguir em frente impressionante. Foram sem dúvida cinco meses muito intensos, com muitas perdas de vidas, mas com muitos sorrisos ganhos e muita aprendizagem.
Trabalhar numa emergência humanitária é um misto de sofrimento, perda, sensação constante de injustiça e revolta, com a sensação de dever cumprido, adrenalina e muitos sorrisos ganhos. Podia falar de muitos outros momentos marcantes, mas seria necessário muito mais tempo.
Que conselhos daria a alguém que profissionalmente gostasse de trabalhar na área das emergências humanitárias?
O meu primeiro conselho é que a pessoa reflita se realmente quer ir e se a resposta é sim então a próxima questão é “queres ir para fazer algo por ti, para tu teres a experiência de ir ao terreno, ou queres ir para trabalhar com e para as populações mais vulneráveis?” Na minha opinião é muito importante ter presente as verdadeiras razões pelas quais saímos das nossas casas, deixamos para trás a nossa família e amigos e nos deslocamos para as zonas mais remotas do mundo. Essa razão tem de estar relacionada com o impacto que o nosso trabalho pode ter na vida do outro.
Claro que esse trabalho, essa experiência nos vai moldar, e muito, enquanto ser humano. E é aí, que temos de prestar muita atenção e saber cuidar de nós, não só a nível físico, mas também a nível mental.
Gosto sempre de reforçar a importância das equipas locais neste tipo de trabalho, conhecemos e aprendemos imenso com o staff nacional. Sem eles a nossa experiência e mesmo o nosso trabalho não faria sentido. Eles são o nosso elo de ligação com as populações. Costumo dizer que temos de ir sempre de “mãos dadas” com as equipas locais.
Por fim, relembrar que o trabalho em emergências é extremamente exigente, estamos inseridos em contextos culturais e condições de vida diferentes, por vezes vamo-nos a baixo e questionamos se realmente estamos a fazer a diferença e a resposta é sim… basta cuidar de uma pessoa, salvar uma vida para tudo fazer sentido.
Que impacto tem tido a COVID-19 nos problemas humanitários do mundo?
A Covid-19 veio agravar e dificultar o acesso à ajuda, proteção e saúde das populações mais isoladas do nosso mundo. Veio isolar ainda mais populações já por si isoladas.
Creio que numa fase inicial da pandemia assistimos a uma onda de solidariedade mundial que criou uma esperança na sociedade, parecia que todos, e todos juntos, estávamos a caminhar na mesma direção, foi algo incrível. No entanto, com o passar do tempo, com o normalizar da situação pandémica, e os interesses económicos e políticos a “virem ao de cima”, assistimos a um mundo ainda mais egoísta (na minha modesta opinião). Creio que a Covid-19 veio agravar as desigualdades sociais e económicas e com isso as populações que já eram vulneráveis estão ainda mais vulneráveis.
Os atores internacionais governamentais e não-governamentais têm enormes desafios logísticos e operacionais pela frente para fazer chegar ajuda humanitária a quem mais precisa. É preciso adaptar, inovar e desafiar o modus operandi. Acredito, tenho de acreditar que o mundo vai melhorar, tem de haver esperança, mas tem de haver vontade.