Data: 1859
Dimensões: 31cm X L.21,5cm lombada 3,5cm
Inventário Biblioteca Histórica (Cota): OH19|01|IHMT
Ainda o País e a capital se debatiam com uma epidemia de cólera que devastava desde 1855, quando a região de Lisboa se confrontou com um outro surto epidémico, de etiologia diferente – a febre amarela.
A doença chegara à cidade no outono de 1856, provavelmente importada do Brasil. Vagueou com casos esporádicos durante o inverno de 1856-57 e o surto epidémico eclodiu com força em Julho de 1857, alastrando então de forma mais devastadora até Dezembro desse ano, para depois se dissipar no 1º trimestre do ano seguinte. Deixou um rasto de mais de 5500 mortos, com uma taxa de mortalidade na população da capital de 1 em cada 35,4 habitantes e uma relação de 1 óbito por cada 3,18 afectados.
Em Setembro de 1857, na fase aguda da epidemia, o governo nomeou um Conselho Extraordinário de Saúde Pública do Reino para acompanhar de perto a evolução da epidemia e propor medidas de contenção. Presidido pelo ministro e o secretário de Estado dos Negócios do Reino (Administração Interna), o Conselho era ainda composto pelo enfermeiro-mor do Hospital de São José, por três médicos e professores da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, um professor da Escola Politécnica, o governador civil e o presidente da Câmara de Lisboa e mais dois cidadãos. As medidas emanadas desse Conselho eram enviadas ao chefe do Governo para que fossem executadas.
No rescaldo da epidemia, o Conselho Extraordinário de Saúde Publica editou o “Relatório da Epidemia de Febre Amarella em Lisboa, no Anno de 1857”, relato que está datado de 6 de Julho de 1859. Esta publicação, de que a Biblioteca Histórica do IHMT possui um exemplar, é muito rica em informação detalhada e em dados estatísticos sobre a epidemia: analisa a interacção do clima e da temperatura; avalia a incidência da doença segundo o sexo, a idade e a profissão; investiga as cadeias de contágio, a ocorrência da moléstia nos diferentes bairros da cidade e arredores, indo ao pormenor do número da casa, do andar e das relações intrafamiliares; estuda a evolução em doentes retidos no domicilio e em doentes tratados em hospitais; detalha a situação em comunidades específicas como fábricas, conventos, instalações militares, recolhimentos, asilos e cadeias.
A abrir, o “Relatório” fornece algumas informações curiosas declarando que a doença, em forma de epidemia, apareceu pela primeira vez na Europa, em Lisboa, em 1723 a que se seguiram outras epidemias no Sul da Europa, em cidades portuárias, ainda no decurso do século XVIII e primeiros anos de 1800’s.
Expõe a sintomatologia e o diagnóstico da doença. Relata as medidas tomadas para conter a epidemia, que sucintamente referimos: estabelecer hospitais dedicados ao tratamento da febre amarela e com condições para o isolamento dos doentes; nomeação de médicos para assistirem os doentes no domicilio e reforço das equipas de saúde com facultativos e outros profissionais, chamados ao serviço especial da epidemia, a quem foi atribuída uma gratificação diária suplementar; o fornecimento de medicamentos ao domicilio, sendo que a maior parte das boticas concedeu descontos de 10%, ou até superiores, para os que eram utilizados no tratamento da epidemia; inspecção dos alimentos vendidos; apelo a uma melhor ventilação e arejamento das casas e estabelecimentos públicos; reforço da autoridade da policia sanitária; “desacumulação” de ruas e das habitações superlotadas nos locais mais afectados pela doença, com um apoio especial para os mais pobres e indigentes; melhoria das condições de salubridade da cidade e dos espaços públicos, com a urgente desinfecção das ruas, das praças e dos mercados, dos canos de despejo etc.; regras específicas para os serviços religiosos, em particular os funerais; contenção na movimentação de tropas; apelo à diminuição em 1/3 dos presos no Limoeiro, propondo a sua remoção para embarcações (o que no entanto não se chegou a efectuar); imposição do afastamento dos navios que estavam atracados em Lisboa e obrigação de um regime de quarentena para passageiros, cargas e bagagens.
O Conselho lamentou ainda, no relatório, a informação incorrecta fornecida por alguns dos navios que chegavam a Lisboa, ocultando a existência a bordo de passageiros com doença.
Na época pouco se sabia sobre a doença que, sabe-se hoje, é causada por um vírus transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, não se conhecendo terapêutica específica. O vector e o vírus só foram identificados no final do século XIX e primeiros anos do século XX, sendo o primeiro vírus humano a ser isolado. A vacina eficaz só ficou disponível em 1937, oitenta anos após aquela epidemia na cidade de Lisboa.
No desconhecimento concreto da etiologia e na ausência de um tratamento específico conhecido, os medicamentos mais usados foram os utilizados na generalidade das epidemias: a cânfora, a quina, a mostarda, as infusões aromáticas, os purgantes, os preparados de ferro e os sais de quinino. A este propósito escreveu-se no relatório: “Ao conselho foram remetidos de diferentes países, e mesmo do reino, diversos remédios para serem aplicados contra a epidemia, acompanhados de apologias e promessas mais ou menos lisonjeiras e esperançosas. É a pratica constante em casos semelhantes […]. De todas […] não se tirou vantagem alguma apreciável […]. O charlatanismo desta vez não vexou nem enganou …”.
Mais adiante regista-se: “Por diversas vezes o conselho fez publicar instruções contendo os preceitos higiénicos […], para o regime que se devia adoptar e o modo de tratar os doentes; e finalmente deu conselhos prudentes próprios para tranquilizar os ânimos mais fracos e tímidos, e para dissipar o terror que nas epidemias concorre muito para o seu maior desenvolvimento e estragos. […] Fez publicar no Diario do Governo um boletim, que dava parte todos os dias do número dos atacados, e dos curados e falecidos …”.
O Relatório conclui invocando que algumas das medidas adoptadas deveriam ficar regulamentadas “para evitar, quanto possível, a sua [da epidemia] repetição, ou atenuar-lhe os efeitos no caso infeliz do seu futuro e novo aparecimento.” Entre as diversas acções que aconselha tomar, para esse futuro, estava a necessidade de uma certificação sanitária internacional, oficial e credível, dos navios e passageiros que aportassem ou saíssem de Lisboa, bem como a construção dum novo lazareto de Lisboa para o serviço das quarentenas. O que veio a suceder com a abertura do lazareto do Porto Brandão (c.1877), que ainda lá está, mas votado ao abando e em eminente ruina.
Apelou também o Relatório ao reconhecimento, régio e do governo, para os abnegados serviços prestados pelos diversos funcionários públicos e privados – médicos, enfermeiros e outros – que actuaram na execução das medidas ordenadas pelo Conselho durante a ocorrência da epidemia. (O próprio Conselho Extraordinário de Saúde Pública perdeu durante a epidemia um dos seus membros, “o qual sucumbiu a um ataque da febre amarela” e manifestou a sua satisfação pelo modo generoso como D. Pedro V “se dignou premiar no filho os serviços prestados por cidadão tão benemérito”.
O monarca tivera papel relevante no árduo combate à epidemia. Ao contrário de muitas famílias abastadas que abandonaram a cidade refugiando-se nas suas propriedades rurais, o rei e a família real permaneceram em Lisboa, na frente de combate, fazendo visitas frequentes aos hospitais e elevando com o seu exemplo o moral da população.
Em sessão de 17 de junho de 1858 o município de Lisboa aprovou a instituição de uma Medalha da Febre Amarela, para reconhecimento dos serviços relevantes prestados por indivíduos de todas as classes na ocasião da epidemia de febre amarela. O rei aprovou-a em decreto de 25 de Agosto de 1859, que assim passou a ser uma condecoração oficial e nacional, com todos os benefícios e reconhecimentos.
A medalha, da autoria de Francisco de Borja Freire, tem representada uma alegoria à cidade de Lisboa distribuindo coroas de louros, e as frases “Lisboa Agradecida”, “1958” e “À Devoção Humanitária”. Foram cunhados um exemplar em ouro destinado a D. Pedro V e 260 em prata, sendo o cunho inutilizado de seguida.
Anos depois D Luís duplicou a condecoração para alguns dos que já tinham sido agraciados com a Medalha da Febre Amarela e retribuiu-lhes novamente os serviços então prestados com a atribuição da medalha da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito (decretos de Agosto de 1862) na sua maioria com o grau de cavaleiro.