Quem o afirmou foi o coordenador da Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Alentejo, Mário Jorge Santos, durante o webinar “Gestão dos grupos de risco no tempo da COVID-19” – tema do 5.º e último webinar da 2.ª Série. O encontro ocorreu a 31 de julho com o objetivo de analisar os impactos da COVID-19 na gestão clínica das doenças crónicas a par com a saúde materna e infantil assim como o impacto da pandemia nos grupos geriátricos. Mário Jorge Santos, Elisabete Nunes e Maria Auxiliadora de Souza Mendes compuseram o painel de oradores, estando a moderação do debate a cargo de Mário Fernandes, diretor do Serviço de Cardiologia do Hospital Américo Boavida, em Angola, e de Raquel Duarte, professora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Portugal.
“Estamos perante um velho novo inimigo”
Mário Jorge Santos, coordenador da Saúde Pública da Administração Regional de Saúde do Alentejo, Portugal, começou por dizer que o novo coronavírus, ao mudar o curso da história e do mundo, “mudou também a saúde e os sistemas de saúde”, que são “a expressão política da necessidade que as populações têm de cuidados de saúde e de proteger a saúde quando pensamos em saúde pública”, afirmou.
De acordo com o especialista, neste momento em que os países europeus apresentam um quadro de endemia, existe a preocupação de evitar uma segunda vaga que “é previsível na altura do inverno”, onde habitualmente ocorre a gripe sazonal. Portugal possui um serviço de vigilância da gripe apertado e segue os coronavírus “enquanto infeções respiratórias de inverno”, contudo o médico especialista em Saúde Pública sublinhou a falta de vacina para este vírus como um problema.
“Não prevejo que haja no curto prazo uma vacina que possa ser identificada, estudada exaustivamente na sua farmacosegurança, produzida em quantidades industriais, distribuída e administrada a nível planetário nos próximos tempos”, referiu, salientando que “temos de nos habituar a viver durante os próximos tempos com uma ameaça permanente, endémica ou pandémica, sem vacina”.
“Um surto num estabelecimento hospitalar implica sempre uma quebra importante dos cuidados prestados às populações”
Neste sentido, os sistemas de saúde têm que se adaptar “melhorando a articulação entre os vários níveis de cuidados” e deve-se salientar que nem sempre é necessário ir ao hospital, o que é uma forma de prevenir a transmissão intra-hospitalar “aos doentes mais vulneráveis onde os efeitos deletérios podem ter um impacto negativo”, assim como “ao pessoal hospitalar especializado, que é indispensável para combater qualquer tipo de pandemia além das doenças habituais”.
É igualmente importante refletir sobre o impacto nas populações mais vulneráveis. Por um lado, refere a população com patologia crónica e a idosa como “as populações vulneráveis face às consequências” e cuja “magnitude do problema é maior e com letalidade muito mais elevada”. Por outro, importa destacar as populações que estão “em franjas sociais de difícil acesso, de marginalidade e de exclusão social”. Para esta população, é “imprescindível que haja articulação entre os vários níveis de cuidados e outras áreas da sociedade para facilitar o acesso e prestar apoio às populações quando estão isoladas, e combater ainda todos os estigmas que se possam estabelecer”, frisou.
“A velocidade na intervenção é crucial para prevenir a transmissão e retardar a evolução da epidemia”. De acordo com Mário Jorge Santos, “rapidez na identificação e elaboração do inquérito epidemiológico, na identificação de contactos e isolamento dos casos, e no tratamento e aprivisionamento dos doentes que disso necessitam, é crucial para prevenir novos casos e retardar a evolução da epidemia, permitindo assim que o nosso SNS possa comportar esta ameaça até ficarmos melhor preparados”, elucidou.
“A letalidade e o isolamento nos idosos são assustadores”
Os idosos levantam particular preocupação pelo impacto da COVID-19 na letalidade e por grande parte desta população viver já em isolamento, ou concentrada em lares ou centros de dia. De acordo com o especialista, “este ambiente é de elevadíssimo risco”, sendo os lares espaços “normalmente sobrelotados, com pouca ventilação natural, sendo muito difícil respeitar as distâncias de afastamento consideraras seguras”. Por outro lado, continuou, “são muito carentes de cuidados por profissionais de saúde qualificados para atender às patologias de que padecem, precisando também os profissionais não qualificados de saúde de cuidados e formação em controlo de infeção”. O especialista sublinhou que “isolar os idosos dentro dos lares é particularmente desumano” e reforçou a necessidade de “arranjar boas condições para receberem a família, regras claras de distanciamento e o uso de máscara”.
Adicionalmente, é necessário melhorar “a capacidade de identificar a patologia nos idosos”, evitando colocar o idoso infectado em contacto com outros, “disseminando a doença sem sequer suspeitar que está infectado”. Para isso, conclui o especialista, “necessita de acompanhamento especializado que vamos ter que desenvolver nos próximos tempos”.
“Moçambique apostou nos princípios básicos de apoio à pessoa com doença respiratória crónica durante a pandemia”
A diretora do Serviço de Pneumologia do Hospital Central de Maputo em Moçambique, Elisabete Nunes, partilhou a experiência deste país na gestão das doenças respiratórias crónicas no tempo da COVID-19. Moçambique atualmente enfrenta um peso crescente das doenças crónicas respiratórias, sendo de grande preocupação os casos de asma, DPOC, sequelas de tuberculose e pneumoconioses. De acordo com a pneumologista, Moçambique dispõe de um programa que visa “reduzir o peso das doenças respiratórias crónicas”, numa colaboração com a CPLP e o Ministério da Saúde. Este programa ficou suspenso com a identificação do primeiro caso de COVID-19 em Moçambique, em março, sublinhando-se que “todas as actividades ficaram focadas na COVID-19 para impedir a sobrecarga do SNS”.
Abordando o perfil de comorbilidades disponível para 263 doentes COVID-19 no país, a pneumologista referiu que “a asma é das comorbilidades mais importantes”, ocupando o topo da tabela, logo seguida por “hipertensão arterial, VIH/SIDA, a doença cardíaca e depois antecedentes de tuberculose e tuberculose activa”, enumerou. Quanto ao número de hospitalizações associadas a comorbilidades e a mortalidade – asma, antecedentes de tuberculose e tuberculose activa – “verifica-se um perfil de factores de risco de hospitalização e de mortalidade coincidentes com os Sul Africanos”.
“Todo o Serviço Nacional de Saúde se preparou para enfrentar a COVID-19”, um processo que envolveu reestruturação de recursos e de normas no sentido de “capacitarmos as nossas infraestruturas não só para a COVID-19 como também para o futuro”.
De acordo com a pneumologista, Moçambique não teve um programa específico direccionado para as doenças respiratórias crónicas, sublinhando que “foram aplicados princípios básicos de apoio ao doente com doença respiratória crónica”, nomeadamente a recomendação de “toma regular dos medicamentos de manutenção para reduzir a exacerbação de asma desencadeada por qualquer infeção respiratória; evitar nebulizadores nas exacerbações; suspensão de tabagismo; acesso ao serviço de urgências em situações de exacerbação; e formação de profissionais de saúde sobre este tema”, descreveu Elisabete Nunes acrescentando que houve igualmente “uma campanha de educação cívica” fundamental para “aumentar a consciencialização da sociedade para a importância da prevenção”.
Por último caracterizou como “importante” o impacto da COVID-19 sobre as doenças respiratórias crónicas, com “uma redução do diagnóstico de casos novos de doenças respiratórias crónicas e dos testes de função respiratória”, assim como “houve uma redução do tratamento e monitorização dos casos conhecidos com estas patologias e a diminuição da ida às urgências durante a exacerbação”.
Em jeito de conclusão, Elisabete Nunes reforçou que “o nosso foco é na prevenção e tratamento regular, pelo que vamos iniciar em agosto o programa educacional sobre doenças respiratórias crónicas para profissionais de saúde e comunidade”, terminou.
“Cuidar de gestantes com COVID-19 inclui vários pontos de atenção do Sistema de Saúde”
Com uma vasta esperiência na área da Saúde da Criança, do Adolescente e da Mulher, Maria Auxiliadora de Souza Mendes, coordenadora de Ações Nacionais e de Cooperação Instituto Fernando Figueiras/FIOCRUZ no Brasil, afirmou que “não sendo este um grupo de risco para a COVID-19, traz-nos preocupações e cuidados particulares”.
Contextualizando os cuidados de Saúde da Criança e da Mulher no Brasil, afirmou haver um cenário de “redução de fecundidade, avanços na qualidade da assistência ao parto e nascimento de risco habitual”, assim como “uma transição epidemiológica em relação às doenças infecciosas e o seu impacto na saúde das crianças, o aumento da expectativa de vida na população feminina e também um aumento na sobrevida de crianças com doenças crónicas e complexas”.
No âmbito do impacto da COVID-19 neste grupo, destacou por um lado “quadros mais graves e mortalidade desde o início da pandemia”, e por outro “a maior expressão das causas externas e violência na morbimortalidade, particularmente a violência interdomiciliar”, frisou.
Analisando as políticas e as ações de Saúde da Mulher e da Criança neste país, Maria de Souza Mendes sublinhou que “não ocorreu um planeamento e implantação de um sistema de saúde integrado e dimensionado para o atendimento de novas necessidades, em geral associadas à assistência de maior complexidade, de acordo com as melhores evidêncais disponíveis”.
Embora sejam “inúmeros os desafios”, a especialista realçou aqueles que “dialogam com as situações de risco para a COVID-19”, designadamente: “sobrepeso e obesidade, envelhecimento da população feminina, doenças emergentes e reemergentes, como o vírus Zika e Febre Amarela, e ainda as disparidades regionais e nos diferentes grupo sociais e raciais”.
“As doenças crónicas complexas nas crianças e adolescentes também implicam situação de risco para COVID-19”. Como explicou a especialista “verificou-se nos últimos anos que crianças e adolescentes com doenças genéticas, doenças raras ou que sobrevivem a partir de uma prematuridade extrema com sequelas, têm a sua sobrevida aumentada mas não necessariamente um cuidado, um acesso ou condições socio-económicas que as possibilitem enfrentar essas condições crónicas complexas com uma melhor performance”.
Durante a sua intervenção, Maria de Souza Mendes sublinhou também o impacto da mortalidade maternal no âmbito da COVID-19, afirmando que “em cada 10 óbitos maternos por COVID-19 publicados em artigos, 8 são de mulheres brasileiras”. São já mais de 200 o número de óbitos maternos no Brasil por COVID-19, um facto que se deve “à composição demográfica da população, à vulnerabilidade social e à prevalência de comorbilidade e doenças crónicas complexas mal controladas” sendo um importante desafio o “acesso e qualidade na articulação do cuidado obstétrico com o cuidado clínico e de terapia intensiva nos casos graves”, defendeu a especialista.
Na perspectiva da especialista “existem pontos críticos a enfrentar” e em concreto nomeou a “capacidade de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), a capacidade instalada de urgência e emergência hospitalar, a força de trabalho, assim como nas estruturas físicas das unidades, o acesso a insumos e equipamentos e ainda aos desafios nos processos de cuidados”. Adicionalmente referiu as várias prioridades que estão neste momento a ser trabalhadas, entre as quais “o planeamento da assistência a estes grupos tendo em consideração as realidades locais”, “a cobertura de cuidados” e ainda “a análise dos dados sobre síndromes gripais em crianças”, no qual o Brasil conta com um sistema de vigilância gripal.
“A pandemia nas Américas aponta neste momento para o reconhecimento da gestação como factor de risco para quadros graves de COVID-19”, afirmou Maria de Souza Mendes frisando que “a gestação mesmo sem risco é factor de risco para quadros graves e as directrizes clínicas precisam avançar na gestão clínica das gestantes”.
Na reta final da sua exposição referiu a “redução da cobertura vacinal e de rastreios de doenças possíveis no período neonatal” como outro ponto importante, destacando aqui “a vigilância de crianças com doenças crónicas complexas”. No caso das crianças, sublinhou que “as síndromes respiratórias agudas e as complicações tardias são raras, mas num denominador populacional muito grande com uma doença tão disseminada no território brasileiro, podem gerar quadros e um número expressivo de crianças que vão necessitar de todos os cuidados”.
Citando a presidente da FIOCRUZ, Nisia Lima, a especialista conlcuiu dizendo: “A pergunta não é como será o mundo, mas qual o mundo que queremos”.
Saiba mais sobre a gestão de grupos de risco no tempo da COVID-19 e assista à discussão destes tópicos no vídeo do webinar.
Leia todos os artigos no dossier “O que sabemos sobre a COVID-19 e como reorganizar os sistemas de saúde”.