A afirmação é de Gonçalo Gonçalves Orfão, médico e Coordenador Nacional de Emergência da Cruz Vermelha Portuguesa, durante o encontro virtual dedicado “A resposta extra-hospitalar à pandemia no espaço lusófono″. Decorrido a 17 de julho, o 3º webinar da série #2 “Como reorganizar os sistemas de saúde na era COVID-19″, pretendeu refletir sobre o contributo da Forças Militares, das Organizações Não-Governamentais e da Comunidade na resposta integrada à pandemia no espaço lusófono, reunindo os especialistas Belchior da Silva, Gonçalo Gonçalves Orfão, Miguel Osório de Castro e Marco António Serronha num debate moderado pelos professores do IHMT-NOVA, Luís Lapão e Gilles Dussault.
As condicionantes da resposta extra hospitalar à pandemia em Angola prendem-se com factores sociais e económicos característicos dos países africanos
O médico e Brigadeiro-General (reformado) Belchior da Silva, professor auxiliar do Departamento Saúde Pública da Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto, em Angola, teve a primeira intervenção no encontro, onde abordou os factores condicionantes de resposta assim como os factores determinantes – positivos e negativos – “que espelham a abordagem epidemiológica aos quadros pandémicos e epidémicos”, neste país.
O especialista em Saúde Comunitária afirmou que os factores condicionantes da resposta extra hospitalar à pandemia em Angola prendem-se com os quadros de cariz social e económico característicos dos países africanos. No contexto do desenvolvimento social, estes factores estão “associados à iliteracia e debilidades de cuidados de saúde de proximidade”, assim como “à cultura e à ruralidade”. Já no quadro económico enumerou como mais relevantes “a água e o saneamento, o desemprego, a pobreza, fome e mega subúrbios que estão relacionados com causas muito diversas como a guerra, oportunidades e gentrificação”.
Sobre os factores positivos que determinaram a resposta à pandemia, no âmbito da entidade estatal, “a declaração do estado de Emergência e Calamidade em tempo oportuno” assumiu elevada importância nesta preparação porque “permitiu diminuir a previsibilidade de catástrofe que havia relativamente aos Estados africanos”, tendo sido também fundamental a “distribuição de água gratuita, às populações mais vulneráveis”, a “potenciação do saneamento do meio”, assim como a “produção nacional de produtos de higiene”.
A Sociedade Civil e a Comunidade tiveram em Angola um grande envolvimento, respetivamente no “apoio às famílias menos favorecidas” e na “produção artesanal de sabão e de máscaras”. E importa ainda realçar a “resposta extraordinária” da Comunicação Social, com desenvolvimento e difusão massiva de “programas que envolvem a comunidade médica, traduzidos para as línguas nacionais”, sublinhou.
De acordo com Belchior da Silva, os factores negativos de resposta extra hospitalar à pandemia estão muito ligados por um lado “aos valores culturais, à pobreza e à iliteracia”, e por outro “à saúde e educação para a saúde”, com uma relevante necessidade de “reforçar a medicina de proximidade junto das comunidades rurais e suburbanas”. Por último, destacou os factores relacionados com os sistemas de transportes, onde a prioridade reside em “arranjar soluções para o controlo dos transportes popularizados ligados ao fenómeno de mototaxismo”, um fenómeno muito comum nas comunidades em África.
Concluindo a sua intervenção, o médico afirmou que é importante fazer “balanços sobre as experiências e perspetivar o futuro de modo a que isto não volte a acontecer mesmo nas sociedades com sistemas de saúde muito bem organizados”.
“Em tempo de pandemia o sector privado é de extrema importância no apoio à indústria”
Em representação do sector privado, Miguel Osório de Castro, especialista em Medicina Interna e diretor Médico da International SOS Angola, começou por afirmar que “a International SOS permite que haja uma continuidade dos serviços e da própria indústria no sentido de dar segurança às operações no dia-a-dia”.
A presença da International SOS em Angola resume-se a “três clínicas, à presença de staff médico em quase todos os sites de empresas offshore, medicina do trabalho e ainda a coordenação da emergência de offshore”, comentou.
No contexto da pandemia, a International SOS em articulação com as autoridades locais deu apoio desde cedo “na manutenção das quarentenas e na colheita de zaragatoas para os trabalhadores que vão para offshores e que vêm para o país”. Além disto, a empresa permitiu também trazer a tecnologia para este meio, possibilitando “a telemedicina, a consulta com especialistas para várias plataformas offshore, fazendo com que haja menor circulação de pessoas e se consiga manter o apoio na saúde”.
Miguel Osório de Castro referiu a criação recente de “uma unidade de isolamento para tratamento de doentes positivos para COVID-19”, uma unidade multidisciplinar que conta “com médicos e enfermeiros de vários países” e tem atualmente “capacidade de cerca de 10 camas, com potencial de crescimento dos mesmos”.
“As evacuações de doentes críticos de Angola” são também um serviço crucial, na medida em que “mesmo com as fronteiras fechadas possibilitamos manter os aviões-ambulância para evacuar pessoas quando a capacidade local médica está explorada ao máximo”, salientou o especialista em medicina interna.
Por fim, mencionou “a prestação de serviços de consultoria”, salientando que “através da colocação de pessoal médico ou de enfermagem nas equipas dos clientes, conseguimos fazer com que houvesse uma aplicação das boas práticas e da manutenção da segurança em cada ambiente de trabalho”, concluiu Miguel Osório de Castro.
“A pandemia COVID-19 já consta do cardápio das ameaças às comunidades humanas do século XXI”
Introduziu o Tenente-General Marco António Serronha, chefe do Estado Maior do Comando Conjunto para as Operações Militares. De acordo com o militar, “à primeira vista a pandemia não constaria das prioridades estratégicas dos Estados”, salientando o “planeamento das estratégias genéticas”, as “estratégias estruturais” e as “estratégias operacionais” como “as capacidades que habilitam os estados para o combate às ameaças e neste caso concreto à pandemia pela acção do novo coronavirus”, sublinhou.
No que diz respeito à resposta “o grande objetivos estratégico nas Forças Armadas na pandemia foi a manutenção de uma capacidade de resposta adequada às necessidades do país daquilo que nos foi sempre pedido”, actuando sob o mote “prevenir, preservar e responder”.
Como afirmou o Tenente-General Marco António Serronha, a realização de análises prospectivas da evolução dos cenários contribuiu para o sucesso das operações no sentido de, em interligação com os principais intervenientes na gestão nacional da pandemia, “introduzir um mecanismo de retroação relativamente à performance que é muito importante na resposta”.
Das medidas tomadas no ambiente interno constam “a interrupção de todas as actividades não prioritárias”, “o ensino mantido à distância” e o desenvolvimento de “teletrabalho”, sublinhando ainda o trabalho em turnos de 14 dias, importante para “minimizar o impacto numa operação” e “preservar o potencial humano”, sendo que este plano de continuidade de trabalho, ainda em vigor, é “avaliado de acordo com a realidade”.
Quanto à resposta externa foi requisitado às Forças Armadas “apoio a lares de idosos”, nas áreas médico-sanitária e logísticos, assim como ”apoio à realização de desinfeções em escolas, lares e viaturas”. Caracterizou como “gigantesca” a operação logística de apoio à reabertura das escolas, que incluiu “ações de sensibilização para higienização em todas as escolas públicas do país, com a população escolar, e ainda a distribuição de milhões de EPI’s e gel a todas as escolas do país. Tudo isto no espaço de 3 semanas”, detalhou o Tenente-General.
Foi igualmente solicitado “apoio médico a doentes do SNS através do pólo Hospital Militar do Porto”, e a disponibilização do Hospital das Forças Armadas no pólo de Lisboa a outras entidades públicas “para efeitos de teste COVID-19 e de internamento”, tendo havido ainda nas unidades militares “a anticipação de centros de acolhimento para o SNS, com ativação de mais de mil camas e disponibilização de capacidade laboratorial”, enunciou. Adicionalmente referiu a articulação com a Câmara Municipal de Lisboa no apoio aos sem abrigo através da “distribuição de mais de 100 mil refeições” e na “montagem de Postos Médicos e Hospitais de Campanha”, contando os últimos com o apoio de oficiais das Forças Armadas no seu funcionamento.
A terminar a sua intervenção o Tenente-General Marco António Serronha salientou o apoio “logístico e transporte aéreo de material para as regiões autónomas”, “na evacuação estratégica e repatriamento de cidadãos portugueses”, bem como o trabalho desenvolvido na inovação na área da saúde, do qual é exemplo a “construção de um modelo de máscara de pressão positiva”, que está neste momento a ser produzida.
“A COVID-19 obrigou a respostas diferentes e inovadoras, sendo transversal a todas as instituições que estiveram que se adaptar”
Por seu turno, o médico e Coordenador Nacional de Emergência da Cruz Vermelha Portuguesa, Gonçalo Gonçalves Orfão, afirmou que “a Cruz Vermelha também se adaptou” para responder à pandemia por COVID-19. Segundo o especialista, a preparação da sua rede teve início em fevereiro com “formação de 1000 socorristas voluntários para poderem atuar perante a pandemia” e posteriormente, “através da criação de uma estrutura de formação e-learning”, a formação continuou na prestação de cuidados associados a COVID-19, assim como “no aumento da capacidade de resposta na área da mortuária”.
Em março, com o início da epidemia em Portugal, foi ativado “um dispositivo dedicado de transporte de vítimas de COVID-19” com uma forte intervenção no norte do país, iniciando também a resposta à solicitação de apoio a unidades hospitalares em Lisboa e no Algarve.
Gonçalo Gonçalves Orfão descreveu a resposta a nível logístico como “complexa”, na medida em que foi necessário “fornecer todas as nossas equipas com o material e os EPIs necessários para poderem desempenhar o seu papel”, mas também prestar “apoio de emergência pré-hospitalar, apoio de saúde, apoio de realojamento de emergência e ainda apoio a outras entidades”, tais como proteção civil, serviços distritais, unidades hospitalares e agentes de proteção civil.
“O material existente a nível nacional foi todo distribuído” a nível nacional e com uma reserva de ação de algumas regiões como o Alentejo e o Algarve. Ainda em fevereiro a Cruz Vermelha procedeu às “primeiras encomendas de EPI para constituir uma reserva nacional”, posteriormente usada para preparação de kits “distribuídos a nível nacional para dar resposta à Cruz Vermelha”, partilhou.
Também do ponto de vista social a Cruz Vermelha viu aumentar significativamente os pedidos de ajuda de “géneros alimentares e vestuário” e de saúde mental, aos quais respondeu através “da criação de linhas de apoio psico-social e de apoio directo”, afirmou o especialista.
Por fim, partilhou a ajuda prestada na realização de testes de diagnóstico de COVID-19. Para o efeito “criámos equipas de enfermagem e montámos um posto fixo de testes COVID-19 no Hospital da Cruz Vermelha em Lisboa”, avançando posteriormente para “equipas móveis, brigadas, de norte a sul do país, de modo a poder cobrir necessidades que estavam ser identificadas pelo próprio Governo”. Totalizando até ao momento 18 mil testes COVID-19 realizados em colaboração com mais de 6 laboratórios a nível nacional, a Cruz Vermelha mantém esta atividade de modo a “conseguir identificar de uma forma mais directa e rápida todos os casos positivos que necessitem de uma intervenção a nível de saúde pública”.
O especialista terminou a sua intervenção mencionando que “nenhum de nós sabe quando vai terminar esta pandemia de COVID-19, o que obriga não só a dar e a criar respostas inovadoras, mas também mais prolongadas no tempo, porque efetivamente há uma necessidade que esse apoio se mantenha e que tenha uma sustentabilidade para podermos estar presentes”, concluiu Gonçalo Gonçalves Orfão.
Saiba mais sobre a resposta extra-hospitalar à pandemia no espaço lusófono e assista à discussão destes tópicos no vídeo do webinar.
Consulte a apresentação do médico e Brigadeiro-General (reformado) Belchior da Silva
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