Princípios do diagnóstico molecular de SARS-CoV-2
Desde o início da dispersão do SARS-CoV-2 que a disponibilização à comunidade científica de sequências genómicas completas deste vírus, obtidas a partir de amostras biológicas provenientes de doentes de origem chinesa, permitiu, quase de imediato, o desenvolvimento, por investigadores alemães, de um teste de diagnóstico molecular para a sua deteção laboratorial. Este teste, bem como todos os outros que vieram, entretanto, a ser desenvolvidos (ver abaixo), explora a rapidez, sensibilidade e especificidade da designada PCR em Tempo Real. Esta combina uma amplificação dirigida de pequenos segmentos do genoma viral à sua deteção com sondas específicas, após um passo de conversão do genoma do vírus (RNA) em cDNA (ou DNA complementar), por transcrição-reversa. Esta deteção pode ser combinada com a sequenciação do genoma viral quando tal for considerado necessário. As regiões do genoma do SARS-CoV-2 que são alvos destes processos de amplificação/deteção incluem os genes que codificam as proteínas N, E, S e a polimerase viral (também designada RdRP, do inglês RNA-dependent RNA-polymerase).
Até ao momento foram já desenvolvidos, por diferentes laboratórios espalhados um pouco por todo o mundo, vários protocolos destinados à deteção molecular de SARS-CoV-2, sendo que o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) sugere ainda, como uma possibilidade alternativa, o uso de dois testes de diagnóstico disponibilizados comercialmente. Normalmente, todos estes protocolos combinam o resultado de três reações de amplificação para cada amostra, as quais devem ser interpretadas em paralelo com os resultados dos devidos controlos de extração e de amplificação. Estas reações de amplificação do genoma do SARS-CoV-2 fazem uso de um par de oligonucleótidos iniciadores de polimerização (ou primers) e de uma sonda destinados à deteção (com sondas de tipo TaqMan) de genomas de vírus do subgénero Sarbecovirus, o qual integra o agente causador da SARS (SARS-CoV) e o SARS-CoV-2. Igualmente, os testes realizados incluem ainda dois outros pares de primers (e respetivas sondas de deteção), desta feita dirigidos, de forma específica, à deteção do genoma do SARS-CoV-2. Estes pares de primers/sondas frequentemente têm como alvos, pequenas porções dos genes que codificam as proteínas N e a RdRp. Deve ser ainda contemplada a deteção de um gene humano nas amostras analisadas de forma a descartar, por exemplo, a presença de inibidores de amplificação, quantidades demasiado baixas de ácidos nucleicos no estrato preparado a partir da amostra colhida, ou que esta tenha sofrido degradação durante o seu transporte até ao laboratório.
Segurança laboratorial na manipulação laboratorial de SARS-CoV-2 e dos seus produtos
O diagnóstico molecular de SARS-CoV-2 em amostras clínicas deve ser realizado em laboratórios adequadamente equipados, por pessoal devidamente treinado nos procedimentos técnicos e de segurança exigidos, e usando equipamento de proteção individual (EPI) adequado.
No que concerne aos procedimentos de segurança que devem ser estritamente respeitados no diagnóstico laboratorial de SARS-CoV-2 destacamos:
- Execução com base na avaliação de riscos e somente por pessoal com capacidade demonstrada para os executar, e em estrita observância de todos os protocolos creditados definidos.
- O processamento inicial (antes da inativação) de todas as amostras deve ser levado a cabo em câmaras de segurança biológicas (BSC) de tipo II, com funcionamento validado. Os trabalhos laboratoriais de diagnóstico não-propagativo, incluindo, amplificação e sequenciação de secções do genoma de SARS-CoV-2 provenientes de pacientes com suspeita ou confirmação de infeção por este vírus, devem ser realizados adotando práticas e procedimentos consideradas como requisitos essenciais (ou boas práticas laboratoriais), conforme detalhado no Anexo 1 deste documento e tendo em consideração uma seleção apropriada de medidas de controlo reforçadas. Estas podem vir a ser aplicadas numa instalação laboratorial se o resultado de uma avaliação de risco revelar que os requisitos essenciais não são suficientes para minimizar risco de contaminação laboratorial e/ou ambiental.
- O trabalho laboratorial de diagnóstico não-propagativo (i.e. que não envolva a replicação viral in vitro, e que inclui por exemplo, a extração e amplificação de ácidos nucleicos ou sequenciação de ácidos nucleicos) deve ser realizado em instalações, no mínimo, equivalentes a BSL-2, sendo que o trabalho propagativo (por exemplo, cultura de vírus, ensaios de isolamento ou neutralização) só poderá ser realizado num laboratório de contenção com fluxo de ar direcional interno (BSL-3). Neste caso o trabalho deve exclusivamente ser realizado apenas por pessoal adequadamente treinado e competente para a realização de trabalho experimental em contexto BSL-3.
- Todas as manipulações de materiais potencialmente infeciosos, incluindo aqueles que podem causar salpicos, gotículas ou aerossóis contendo agentes infeciosos (por exemplo, carregamento e descarregamento de copos de centrífuga selados, trituração, mistura, agitação ou mistura vigorosa, sonicação, abertura de recipientes de materiais infeciosos cuja pressão interna pode ser diferente da pressão ambiente), deve ser realizada em BSCs e centrífugas de segurança, adequadamente mantidas e validadas por pessoal com capacidade demonstrada.
- É obrigatória a utilização de equipamento de proteção individual (EPI), como luvas, proteção para os olhos, cabelo e para os sapatos (devem ser usados socas anti-estáticas/hospitalares), máscara (mínimo P2/N95 em salas de pressão negativa, ou P3/N99) e bata descartável sobre uma bata de algodão, ao manusear os reagentes, incluindo os de qualquer kit destinado ao diagnóstico de SARS-CoV-2, as amostras, pipetas e outros equipamentos. A correta sequência de colocação e, especialmente, de remoção deste EPI pode ser observada aqui.
- Devem ser usados desinfetantes apropriados com atividade comprovada contra vírus com invólucro lipídico. Estes incluem, por exemplo, lixívia (por exemplo, 1.000 ppm (0,1%) para desinfeção geral da superfície e 10.000 ppm (1%)), álcool a 70%, peróxido de hidrogénio a 0,5%, glutaraldeído a 1% ou compostos quaternários de amónia. Deve ser dada especial atenção não apenas à seleção do desinfetante, mas também ao tempo de contacto deste com qualquer superfície (por exemplo, 10 minutos), diluição (ou seja, concentração do ingrediente ativo) e prazo de validade após a preparação da solução de trabalho.
- As superfícies de trabalho, pipetas e centrífugas devem ser limpas e descontaminadas com lixívia a 10%, DNAZapTM ou RNase AWAY® para minimizar o risco de contaminação cruzada com ácidos nucleicos. A lixívia residual deve ser removida com etanol a 70%. Devem ser utilizadas, sempre, pontas de micropipetas com barreira de aerossol (pontas-com-filtro) as quais devem ser mudadas entre todas as transferências manuais de líquidos. Todas as manipulações laboratoriais exigem a utilização de materiais descartáveis, o qual deve ser autoclavado antes do descarte final.
- As amostras biológicas colhidas de casos suspeitos ou confirmados de infeção por SARS-CoV-2 devem ser transportadas em embalagens de tripla-proteção como UN3373, “Substância Infeciosa da categoria B”. As culturas virais ou isolados devem ser transportados como Categoria A, UN2814, “Substância Infeciosa da categoria A”.
- Em geral, as amostras biológicas onde se pretenda proceder à deteção molecular de vírus podem ser “inativadas” por uso de condições altamente desnaturantes, que desestabilizem a estrutura viral. Estes tratamentos eliminam, ainda, nucleases celulares, mas mantêm a estrutura do RNA viral para análises posteriores. Para tal, pode recorrer-se ao uso de soluções de lise, compostas com sais de guanidina (tiocianato de guanidina, isotiocianato de guanidina), ou optar por uma de várias opções comerciais, amplamente utilizados nos laboratórios onde se realizam técnicas moleculares (por exemplo, Tripure©, Trizol©), e que oferecem um bom desempenho. Além disso, a maioria dos kits de extração de RNA (viral ou total) fornece aos tampões de lise as características de desnaturação necessárias. De qualquer forma, devem ser seguidas as instruções do fabricante e os protocolos padronizados de cada laboratório, bem como as medidas de proteção individual estabelecidas. O potencial infecioso das amostras biológicas destinadas à deteção molecular do vírus SARS-CoV-2 também pode ser inativado através de tratamento térmico a 60°C durante 30-60 min. Para aumentar a biossegurança, pode mesmo recomendar-se o uso de uma solução desnaturante em combinação com a inativação pelo calor.
Colheita e transporte de amostras
De forma a garantir a segurança daqueles que colhem amostras biológicas destinadas à deteção de SARS-CoV-2 é exigida a adesão estrita a normas de segurança durante a colheita de amostras, e que incluem a utilização de EPI e o treino na colheita, armazenamento adequado e transporte das mesmas. Todas as amostras colhidas para diagnóstico laboratorial devem ser consideradas potencialmente infeciosas.
As amostras a colher corresponderão a material biológico com origem no trato respiratório e incluem:
- amostras respiratórias superiores: esfregaço (swab) nasofaríngeo e/ou lavagem orofaríngea em pacientes em ambulatório;
e/ou
- amostras respiratórias inferiores: expetoração (se produzida) e/ou aspirado endotraqueal ou lavado broncoalveolar em pacientes com doença respiratória. Neste caso em particular, deve ser tomado um cuidado especial devido ao elevado risco de aerossolização.
O vírus pode ainda ser detetado nas fezes, bem como em tecido pulmonar colhido durante uma autópsia (para diagnóstico post mortem). A sua deteção em lenços é igualmente possível.
Para informações adicionais relativas à colheita, armazenamento e transporte de amostras biológicas para despiste de infeção por SARS-CoV-2 consulte a tabela 1 neste documento. Informações adicionais relativamente a este assunto podem, igualmente, ser consultadas aqui.
Confirmação laboratorial de infeção por SARS-CoV-2 por amplificação/deteção de ácidos nucleicos em amostras biológicas
A confirmação laboratorial de infeção por SARS-CoV-2 deve atender às seguintes condições:
- Um resultado positivo no teste de amplificação/deteção de genoma de SARS-CoV-2 para pelo menos dois alvos diferentes no genoma viral, dos quais pelo menos um alvo é preferencialmente específico para este vírus;
ou
- Um resultado positivo do teste de amplificação/deteção para a presença de sarbecovírus sendo que a identificação de SARS-CoV-2 é feita através da sequenciação total ou parcial do genoma viral, mas desde que o fragmento sequenciado tenha uma dimensão superior à do fragmento de amplificação obtido.
Sempre que forem obtidos resultados discordantes, deve ser colhida uma nova amostra do mesmo indivíduo, repetido o processo de deteção molecular e, se possível, associá-lo à sequenciação de, pelo menos, parte do genoma viral.
Segundo as recomendações da OMS (datadas de 19 de março de 2020), em áreas onde o vírus SARS-CoV-2 está amplamente disseminado, pode ser adotado um algoritmo de triagem laboratorial no qual, por exemplo, a obtenção por amplificação/deteção de um único alvo discriminatório é considerado suficiente.
No entanto, um ou mais resultados negativos não descartam a possibilidade de infeção pelo novo coronavírus. Vários fatores podem levar a um resultado de deteção molecular negativo em um indivíduo infetado, incluindo:
- má qualidade da amostra, contendo pouco material biológico (como controlo, deve ser considerada a deteção de DNA humano adequado na amostra, incluindo um alvo humano no teste de PCR);
- a amostra biológica foi colhida tardiamente ou demasiado cedo tendo em conta o percurso da infeção;
- o espécime colhido não foi manuseado e/ou adequadamente enviado ao laboratório. Este problema é resolvido com a introdução, como controlo de amplificação, da amplificação/deteção de um gene humano.
- razões técnicas inerentes ao teste, incluindo mutações no genoma viral ou inibição das reações de transcrição-reversa e/ou de amplificação por PCR. Este último ponto é acautelado através da utilização de controlos positivos de amplificação (sequências de origem viral). A introdução de um controlo negativo no teste permite verificar a ocorrência de contaminações cruzadas com ácidos nucleicos.
Caso um resultado de deteção molecular de SARS-CoV-2 se tenha revelado negativo, tendo sido obtido de um paciente com elevada suspeita de infeção por este vírus, particularmente quando apenas tenham sido colhidas amostras do trato respiratório superior, aponta para a necessidade de serem colhidas e testadas amostras adicionais, inclusive das vias respiratórias inferiores.
Autoria:
Documento elaborado pelos seguintes membros da Comissão de Saúde Ocupacional, Biossegurança e Qualidade (CoSOBQ) do IHMT/NOVA: Cláudia Conceição; Dinora Lopes; Jorge Ramos; José Manuel Cristóvão; Maria Luísa Vieira; Marta Pingarilho; Pedro Ferreira; Ricardo Parreira.