Jorge Seixas, investigador do IHMT, concedeu uma entrevista à Rádio França Internacional (RFI) no passado dia 30 de janeiro, por ocasião do aumento de surtos de cólera em África.
“Mais preocupante que a covid-19” naquele continente, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a situação mais inquietante é no Maláwi, onde morreram mais de 1.000 pessoas desde Março de 2022.
Leia abaixo a entrevista na íntegra ou visite a página em OMS preocupada com aumento de surtos de cólera – Ciência (rfi.fr)
RFI: “Antes de mais o que é a cólera?”
Jorge Seixas, director da Unidade de Clínica Tropical do Instituto de Higiene e Medicina Tropical: “A cólera é uma doença diarreica aguda que é ocasionada por uma bactéria que está na água e que poderá estar também nos alimentos, uma vez que estes podem ser irrigados com água contaminada. Nalgumas circunstâncias, em África em particular, o contacto com um indivíduo que falece de cólera pode também transmitir directamente – através da mão – quem manipula durante os rituais fúnebres aos que participam do ritual fúnebre.”
“Quais são os sintomas da cólera?”
“Os sintomas são basicamente a diarreia, mas pode haver infecções por essa bactéria que decorrem sem sintomas. Habitualmente, há uma diarreia aguda, é relativamente banal. Mas, numa certa percentagem de casos, a cólera assume um carácter de uma diarreia com uma perda de líquido através das fezes tão intensa, na ordem de cinco a dez litros por dia, o que torna a cólera – quando se manifesta dessa maneira – das doenças que matam mais rapidamente um indivíduo saudável.”
“Ou seja, ainda que seja tratável, pode provocar a morte por desidratação se não for prontamente combatida…”
“Exactamente.”
“A Organização Mundial da Saúde alertou que a principal preocupação em África já não é a Covid-19 mas sim o surto de cólera que afecta dez países africanos. Quais são estes principais países afectados de uma forma geral e porquê? Temos noção porque é que são estes países?”
“Em geral, para que haja o surto de cólera, é preciso que haja um evento natural, por exemplo, ciclones, como é o caso de Moçambique ou da Nigéria, ou seca, no caso da Etiópia e do Corno de África, que limita o acesso à água de qualidade mínima. No caso dos ciclones, há uma grande mistura, por causa das inundações, de água contaminada nas fontes de água anteriormente adequadas para consumo humano. Estes eventos climáticos, ciclone ou seca, são um factor determinante para a existência de surtos de cólera.”
“O aumento das temperaturas devido ao aquecimento global também pode facilitar o aparecimento de surtos de cólera?”
“O aumento das temperaturas vai, por exemplo, ocasionar ciclones na costa leste de África, mas também no Golfo da Guiné, e seca nalguns outros lugares. Não é a temperatura ambiental em si, mas as consequências destas alterações climáticas que não são só o aquecimento. É instabilidade com eventos climáticos extremos que estão a aumentar claramente. Então, isto deverá ser um factor importante neste ressurgimento com surtos mais intensos e mais numerosos e mais duradouros, associado a uma disrupção dos sistemas de resposta em termos de saúde que sofreram com os efeitos da pandemia do Covid-19 mesmo em África.”
“Esta expansão foi evidente no Malawi, onde se regista o pior surto de cólera de sempre, com mais de 1.000 mortos desde Março do ano passado. O que é que se passa?”
“O que se passa nesse país é basicamente uma desestruturação sociopolítica muito intensa. Todo o acesso a água de qualidade, o sanitarismo que não existe, os esgotos, as condições de vida da população implicam que têm, primeiro, dificuldade de acesso a esta água de qualidade potável e, depois, as contaminações entre a rede de esgoto e a rede de suprimento de água, associada a uma muito baixa capacidade de resposta, a um surto de cólera. Se um sistema de saúde pública já é deficiente, então quando você tem milhares de casos, isso requer uma acção muito incisiva em hospitais de campanha com a colaboração da ONGs. Os sistemas de saúde pública desses países não têm capacidade, muitas vezes, de sozinhos de fazerem face a um stress adicional que é um surto de cólera.”
“Entretanto, o governo do Malawi queixou-se de falta de vacinas e disse que só há um fabricante de vacinas contra a cólera, o que torna mais difícil a sua compra. Isto é verdade? Mais uma vez, os interesses da indústria sobrepõem-se aos interesses da comunidade, ou seja, não aprendemos nada com a Covid-19?”
“Não existe só uma vacina, existem quatro vacinas, mas a mais utilizada para a vacinação reactiva, que é a vacinação feita quando há um susto de cólera, é a Dukoral. Essas vacinas são orais, requerem duas doses e, na verdade, as empresas – e principalmente esta que fabrica a Dukoral – já está no limite da sua capacidade de produção.
Estamos a falar de um número de cerca de 24 milhões de doses necessárias face a esta deficiência de existência da vacina no mercado. Inclusive, a OMS acabou por dizer ‘Vamos fazer uma dose que confere alguma protecção e vamos eventualmente limitar o número de indivíduos que recebem duas doses’ que é o necessário para uma protecção mais completa. Mas estamos a falar exactamente de 24 milhões necessárias, mais oito para fazer a segunda dose.
Na verdade, é um problema de produção, como já se viu no passado para a produção da vacina da febre amarela. Não é possível aumentar repentinamente ou muito rapidamente a capacidade de produção face a este aumento no número de países e regiões que estão a ter surtos de cólera.”
“Como se pode combater a propagação de cólera, nomeadamente em países onde há uma falta crónica de redes de saneamento?”
“Não tenho soluções mágicas. Como é que os países europeus e Estados Unidos – que também tinham cólera, aliás todos os países do mundo tiveram cólera num certo momento – resolveram o problema? Investindo na rede de água de qualidade e de sanitarismo básico. Porque é que estes países de baixo e médio rendimento não conseguem fazer isso? Simplesmente porque as prioridades são diversas. Temos malária, temos HIV, temos dengue, temos uma série de outras doenças. Acaba por ser sempre, como se diz, correr atrás do prejuízo porque os investimentos na água, no sanitarismo e na higiene acabam por sofrer sempre e constantemente atrasos. Mas é uma questão de estabelecer isso como prioridade.”
“Se a nível político a população não está protegida, o que é que a população – individualmente e em termos da própria comunidade – pode fazer para se precaver?”
“A água é tornada potável adicionando-lhe três gotas de lixívia por litro de água e deixando repousar durante 20 minutos. A cloragem da água, adicionando de lixívia, é o que se faz durante os surtos de cólera nos poços e nas fontes de água. Individualmente, as pessoas têm que esterilizar a água, utilizando essa pequena quantidade de lixívia que torna a água segura. A cloragem é uma técnica que se usa já há décadas.”
“E a lavagem das mãos…”
“Sim, a lavagem das mãos, claro. Mas (o contágio acontece), sobretudo, através da ingestão de água e de legumes frescos contaminados com água que tem a bactéria da cólera.”
“O Centro Africano para o Controlo e Prevenção de Doenças da União Africana disse estar preocupado com a expansão do surto de cólera do Malawi a outros países vizinhos, nomeadamente Moçambique. Houve, pelo menos, 16 mortos até agora em Moçambique. Está preocupado?”
“Moçambique não precisa de importar cólera do Malawi porque Moçambique tem regularmente ciclones e outros problemas infraestruturais na Beira e em regiões costeiras que sofrem esse tipo de fenómeno climático. Evidentemente, há indivíduos que são contaminados por esta bactéria e que, se não têm sintomatologia, passam a eliminar a bactéria nas fezes. Claro que se um indivíduo, vindo para a Beira, por exemplo, é portador da bactéria, pode ajudar a contribuir para contaminar as redes de esgoto ou facilitar a disseminação dessa bactéria, sim.
Mas, a própria OMS e as várias organizações não colocam restrições à movimentação das pessoas por causa de surtos de cólera porque isso teria um impacto também muito desfavorável na vida das pessoas, de pequenos comerciantes que deixam de poder fazer a sua vida que implica muitas vezes deslocações transfronteiriças.”
“Como vimos durante a pandemia de Covid-19…”
“Sim, exactamente, em que a África pagou um preço muito alto porque uma parte da economia é informal. Desde há muito tempo que a OMS não recomenda nenhum tipo de restrição de movimentação de pessoas. Existe um risco? Sim, existe um risco, mas não é por isso que se vai impedir as pessoas de fazerem uma vida normal em termos das suas movimentações. É preciso é trabalhar a montante disso: fazer obras de engenharia sanitária que garanta acesso à água potável e a uma rede de esgotos funcional. É a estratégia Wash (‘water, sanitation and hygiene’ – água, sanitarismo e higiene): esterilizar a água, lavagem das mãos com água e sabão…”
“O aumento de surtos não é só em África. Globalmente houve um aumento da cólera, depois de anos de declínio. Em Setembro, a OMS falou no recrudescimento preocupante de cólera no mundo. Falou-se do Haiti, da Síria, do Líbano… Isto também tem a ver com a pobreza, com as guerras?”
“Sim, sim. Instabilidade sociopolítica, campos de refugiados – é o caso da Síria, do Iémen, da República Democrática do Congo, Haiti, que infelizmente continua sem conseguir resolver os seus problemas sociopolíticos, em que a água é um elemento fundamental mas em que não foi possível durante décadas de continuar a fornecer a água potável de uma forma sustentada. É isso que contribui para este aumento nalguns desses lugares.”