O médico e professor Fernando Cupertino, membro do Conselho do IHMT-NOVA, participou no encerramento das XI Jornadas Científicas do instituto, que decorreram a 10 de dezembro, com a conferência intitulada “Uma breve reflexão sobre os impactos da COVID-19 na vida académica”. A iniciativa reuniu uma audiência de mais de 120 pessoas que partilharam ideias e contribuíram para o debate científico.
Na sua intervenção, o médico brasleiro com especialização em Ginecologia e Obstetrícia começou por lembrar que “o mundo foi brutalmente atingido, desde o início deste ano de 2020, pelo flagelo da pandemia da COVID-19” . Fernando Cupertino lançou um repto a todos os que estavam presentes: “Gostava de refletir convosco sobre os impactos da pandemia na vida em sociedade e, de modo especial, na vida académica, seja no ensino, seja na investigação.”
Doutorado em Ciências da Saúde (Saúde Coletiva) pela Universidade de Brasília, o professor realçou que “diversos aspectos interferiram diretamente na vida das pessoas – e continuam a fazê-lo, dentre os quais o isolamento e distanciamento social; as ações de saúde pública; as medidas económicas; o desemprego; os reflexos sobre a saúde mental das populações; a expectativa de uma vacina tão ansiosamente aguardada”.
Nesta conferência das XI Jornadas Científicas do IHMT, o também coordenador técnico do CONASS – Conselho Nacional de Secretários de Saúde defendeu que a COVID-19 em particular e as doenças no geral são fénomenos múltiplos, “a um só tempo biológicos e sociais, numa perspectiva de construção histórica de processos que as determinam ou influenciam”, sem esquecer as problemáticas relacionadas com as desigualdades (sociais, económicas e em saúde) que no atual contexto ganham uma maior dimensão.
Estudos já revelaram que em situações anteriores de quarentena as pessoas evidenciaram uma diminuição do humor, uma maior irritabilidade, raiva, medo e insónia, muitas vezes de longa duração. “Dado o caráter inédito do distanciamento e isolamento sociais simultâneos de milhões de pessoas, o impacto da pandemia pode ser ainda muito maior do que o já relatado”, sublinhou o professor.
Fernando Cupertino considerou igualmente que deve ser dado “um enfoque especial ao estado mental dos profissionais de saúde e outros trabalhadores que os cercam, tais como motoristas, seguranças, profissionais da limpeza e outros”, lembrando que têm lidado com “pressão, stress e exaustão ligados às longas horas de trabalho”, até à gestão de casos graves e “ao medo da contaminação e da morte”, para além da distância da família e do risco de hostilidades por serem encarados como potenciais transmissores da COVID-19.
Pandemia transforma a vida dos estudantes em todo o mundo
Na vida académica, realçou Fernando Cupertino, “a pandemia forçou o mundo da educação a lançar mão de tecnologias da informação, algumas nem assim tão novas, de modo a suprir, ainda que parcialmente, a impossibilidade do ensino presencial”.
O professor universitário citou também estudos que têm sido realizados nos EUA e Reino Unido que por um lado indicam confiança na continuidade do ensino remoto, mas por outro preocupação com a possibilidade das crianças ficarem em desvantagem no que respeita à aprendizagem. Um estudo com origem no Brasil, sublinhou Fernando Cupertino, revela que 30% dos jovens pensam em abandonar a escola porque têm grande dificuldade no estudo em casa. E o maior problema não é apenas a falta de computador ou internet veloz, mas o próprio equilíbrio emocional e a capacidade de organização para estudar.
“No ensino superior, a pandemia da COVID-19 transformou a vida dos estudantes em todo o mundo, com implicações na maneira como vivem e trabalham, repercutindo sobre seu bem-estar físico e mental. O rompimento do vínculo entre alunos e professores, vital para o processo de aprendizagem, mostrou claramente que “uma tela não é a universidade, como bem disse o pedagogo espanhol Miguel Ángel Santos Guerra”, afirmou ainda Fernando Cupertino.
O médico e professor lembrou a necessidade humana de proximidade física, ainda mais marcante em certos povos como os latinos, o que torna compreensível que o isolamento ou confinamento colidam frontamente com a essência gregária da vida em sociedade. “Por conseguinte, não é difícil imaginar o porquê do sofrimento que determina alterações importantes na saúde mental das pessoas. Assim, no nosso ambiente académico, de ensino e de investigação, estamos também sujeitos ao impacto determinado pelo distanciamento das pessoas com quem convivíamos quotidianamente, e pela mudança na nossa rotina de trabalho, com consequente reflexo sobre o nosso rendimento como docentes, discentes ou investigadores”, afirmou.
“Como falar de lavagem frequente das mãos com água e sabão, se nem água há?”
Fernando Cupertino alertou também na sua intervenção para as desigualdades, realçando que o acesso às tecnologias, as condições de habitação e de usufruir de um ambiente tranquilo e adequado ao estudo à distância, são diferentes e por isso nem todos temos a mesma capacidade de lidar com a situação de crise geral. Para além das disparidades de pessoa para pessoa, também existem diferenças importantes entre os países e dentro deles próprios. “Se levarmos o tema até os países em desenvolvimento e aqueles mais pobres, serão ainda mais graves e evidentes as desigualdades e, sem dúvida, as iniquidades, que, por definição, traduzem-se por desigualdades injustas, evitáveis e intoleráveis. Passa-me pela cabeça, por exemplo, a situação vivida nas favelas da cidade do Rio de Janeiro, onde as pessoas sequer têm abastecimento regular de água encanada… como falar de lavagem frequente das mãos com água e sabão, se nem água há?”
“Notícias falsas tornaram-se uma epidemia dentro da pandemia.”
No final da conferência, Fernando Cupertino refletiu sobre questões éticas que devem estar presentes nos objetivos de uma investigação científica em prol do bem-estar e melhoria da vida das pessoas, realçando que existe agora um imperativo ético de reforçar esta atividade para que a ciência possa ajudar na superação dos problemas e desafios da pandemia COVID-19. “Além disso, é preciso desenvolver tratamentos e vacinas não para propriedade e uso exclusivo dos países detentores da patente, mas, sim, para considerá-los bens mundiais, acessíveis e disponíveis para todos os povos. Trata-se, pois, de uma expressão da dimensão ética no campo das políticas públicas e da saúde global”, acrescentou.
Por último, Fernando Cupertino deixou uma nota sobre a ética da comunicação e as as chamadas ‘fake news’, que correspondem à absoluta falta de valores e princípios. “Especialmente em países cujos governos enfrentaram a COVID-19 de forma errática e apartada da Ciência, as notícias falsas tornaram-se uma epidemia dentro da pandemia.”
No final, o professor transmitiu palavras de esperança, lembrando que apesar das dificuldades da situação vivida no mundo em 2020 podem surgir novas oportunidades para a humanidade e o reforço de valores sociais como a solidaderidade, respeito pelas diferenças e cooperação mútua. Por último, Fernando Cupertino leu um trecho poema da professora norte-americana Catherine O´Meara, que “traduz, talvez, um estado de esperança que devemos manter acesso em nosso íntimo”:
Quando a tempestade passar,
as estradas se amansarem,
E formos sobreviventes
de um naufrágio coletivo,
Com o coração choroso
e o destino abençoado
Nós nos sentiremos bem-aventurados
Só por estarmos vivos.
E daremos, então, um abraço ao primeiro desconhecido
E elogiaremos a sorte de se manter um amigo.
E aí nos lembraremos de tudo aquilo que perdemos e, de uma vez, aprenderemos tudo o que não aprendemos.
Não teremos mais inveja, pois todos sofreram igualmente.
Não teremos mais o coração endurecido.
Seremos todos mais compassivos.
Valerá mais o que é de todos do que o que eu nunca consegui.
Seremos mais generosos
E muito mais comprometidos
Entenderemos o quão frágeis somos, e o que significa estarmos vivos!
Vamos sentir empatia por quem está e por quem se foi.
Sentiremos falta do velho que pedia esmola no mercado, de quem nunca soubemos o nome e sempre esteve bem perto de nós.
E talvez o velho pobre fosse Deus disfarçado…
Mas você nunca perguntou o nome dele
Porque estava com pressa…
E tudo será milagre!
E tudo será um legado
E a vida que ganhamos será respeitada!
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