“O que precisamos saber?” sobre vacinas contra a COVID-19 foi o tema da primeira parte do webinar#3 do Projeto “IANDA Guiné Saúde”, intitulado “Vacinas COVID-19: Verdades e mitos”, que juntou no palco virtual os especialistas João Piedade, Constantino Sakellarides e Rogério Gaspar para abordar as tipologias de vacinas, o estabelecimento de grupos e prioridades de vacinação, assim como a regulamentação e acesso às vacinas em África, num debate moderado pelos professores do IHMT-NOVA Jorge Seixas e Luís Varandas.
“As vacinas não podem ser licenciadas sem passar uma série de requisitos rigorosos”
A primeira intervenção coube ao professor da Unidade de Microbiologia Médica do IHMT-NOVA, João Piedade, com o objetivo de focar as tipologias das vacinas desenvolvidas contra a COVID-19. De acordo com o especialista em virologia “as primeiras ideias vacinais começaram a ser desenvolvidas logo após a sequenciação do genoma do SARS-CoV-2, em janeiro de 2020”, o que permitiu nos 12 meses seguintes ter “uma quantidade bastante elevada de vacinas em desenvolvimento”. Como explicou, a glicoproteína da espícula (Spike) – “mais abundante e mais imunogénica neste vírus” – serviu de base para “o desenvolvimento da grande maioria das vacinas”, cujas tipologias subjacentes vão desde a abordagem clássica (vírus inativado, vírus atenuado e subunidades de proteína), às vacinas baseadas em “partículas de tipo vírus” (VLPs) e vetorizadas, bem como vacinas de DNA ou de mRNA, mais inovadoras.
“As vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna não surgiram subitamente em 2020 como um conceito para uma vacina de mRNA: são baseadas em ideias desenvolvidas há décadas”, afirmou João Piedade perante a perceção da população sobre a velocidade a que estas duas vacinas foram desenvolvidas. “A ideia do mRNA de um determinado organismo poder expressar proteínas num outro de uma forma heteróloga é muito antiga e a aplicação dessa ideia para o desenvolvimento de vacinas surgiu há cerca de 25 anos”, afirmou o virologista sublinhando que o facto de termos atualmente “tecnologia suficientemente madura” foi um dos fatores determinantes para “aplicar rapidamente essa tecnologia ao desenvolvimento de uma vacina para esta pandemia”. O especialista explicou que existem várias outras vacinas originais em desenvolvimento – como as de administração por via oral – contudo, dado o mediatismo gerado por estas vacinas, esclareceu que a ideia das vacinas de mRNA consiste em “encapsular o mRNA que codifica para a proteína da espícula do SARS-CoV-2 em nanopartículas”, que ao serem internalizadas nas células via endocitose “vão permitir a expressão dessas proteínas para produzir os antigénios virais nas células que são imunizadas” e, consequentemente, “permitir apresentações antigénicas e o desencadear de respostas imunitárias inatas e adaptativas”.
João Piedade salientou ainda que o desenvolvimento destas vacinas foi muito rápido devido “ao conhecimento acumulado quer pelos estudos dos outros coronavírus, quer pelas tecnologias que estavam a ser desenvolvidas” o que permitiu a “realização de ensaios de fase II e III em simultâneo”, concentrando assim 10 anos de estudos num número de meses bastante reduzido. Adicionalmente, reforçou a eficácia elevada e o perfil de segurança favorável das vacinas contra a COVID-19, uma vez que “as vacinas não podem ser licenciadas sem passar uma série de requisitos rigorosos”, concluiu.
“Esta vacina é um bem escasso e de importância vital”
De seguida, Constantino Sakellarides, professor catedrático da Escola Nacional de Saúde Pública da NOVA de Lisboa, fez uma reflexão sobre os grupos e prioridades na vacinação destacando 5 pontos essenciais no exercício de estabelecer prioridades aceitáveis. Em primeiro lugar, destacou que “esta vacina é um bem escasso e de importância vital” e, como tal, surge a importância de “saber como estabelecer as prioridades e quais são essas prioridades” para que “sejamos capazes de distribuir este bem escasso de uma forma razoavelmente equitativa”. O estabelecimento de prioridades para a vacina deve ser sustentado por dois princípios fundamentais: “o rigor da sua fundamentação e a necessidade de estabelecer um consenso científico claro em torno dessa fundamentação e dessas prioridades”, acrescentando Constantino Sakellarides que “os dois eixos fundamentais em estabelecer e fundamentar a prioridade de vacinação são, por um lado, a idade” – associada a elevadas taxas de letalidade – “e por outro lado aquelas pessoas que, pelas suas funções profissionais, estão suscetíveis a infeção e ao mesmo tempo são indispensáveis para cuidar das pessoas que têm a doença”.
O especialista em Saúde Pública realçou também a necessidade de “assegurar que a comunidade científica influente nessas matérias esteja amplamente confortável com aquilo que vai ser divulgado”, salientando-se que “quando a comunidade científica apresenta dúvidas, oposições e críticas após divulgação do plano de vacinação cria-se na população desconfiança em relação à forma como estas prioridades foram estabelecidas”. Além disso, há que ter em mente que “uma vez divulgado o plano de prioridades é muito difícil modificá-lo sem danos”. É também de suma importância garantir o cumprimento das prioridades implementadas, sendo para isso necessário investir na “procura ativa dos grupos prioritários e assegurar que eles recebem a vacina”. “Vacinar os outros quando não encontramos os grupos prioritários desvirtua o plano de prioridades”, acrescentou. Constantino Sakellarides terminou referindo que “responder bem a este desafio delicado dá-nos confiança uns aos outros e dá confiança às nossas instituições, sem esquecer que a confiança nas instituições é um fator essencial para o nosso desenvolvimento”.
“A resposta muito rápida não tem grandes segredos: tem condições pré-existentes e uma vontade firme e coordenada de trabalhar em conjunto desde o primeiro momento”
A fechar a primeira parte do webinar, tomou a palavra o Diretor Departamento de Regulação e Pré-qualificação da Organização Mundial da Saúde (OMS), para abordar a regulamentação e acesso às vacinas em África. Rogério Gaspar começou por esclarecer que a resposta muito rápida nos últimos 14 meses foi o resultado de três fatores fundamentais: “a capacidade de resposta do ponto de vista da investigação e desenvolvimento, só possível pelo estabelecimento de grandes parcerias globais envolvendo os sectores público e privado”; “a capacidade de resposta regulamentar, articulada pela coligação internacional ICMRA” e “a capacidade de distribuição das vacinas através do trabalho de longa data desenvolvido pela UNICEF e pela Global Alliance for Vaccines and Immunization (Gavi) de forma coordenada com a OMS”. Na sua visão, “a pré-existência de redes de coordenação e de redes de trabalho conjunto são a peça fundamental para perceber a velocidade de resposta naquilo estamos a assistir neste momento”.
Atualmente, África está num processo de formação de uma autoridade reguladora na área do medicamento, um objetivo estratégico fundamental para que dentro de alguns anos haja neste continente “um espelho daquilo que é hoje a Agência Europeia do Medicamento no contexto da União Europeia”. Para Rogério Gaspar é importante perceber desde logo que “os instrumentos que existem são permanentes e têm sido utilizados de uma forma cada vez mais eficiente, nomeadamente para a preparação através do ACT-Accelerator”, que tem um conjunto de pilares desenvolvidos nas áreas do diagnóstico, terapêutica, das vacinas, dos sistemas de saúde e também da alocação de bens, serviços e pessoal de saúde quando necessário.
No que respeita o pilar das vacinas, a COVAX – coordenada pela Gavi, OMS e CEPI e com a UNICEF – envolve um conjunto de grupos de trabalho na área de investigação e desenvolvimento, investigação clínica, preparação e capacidade de resposta do ponto de vista da produção e da articulação da capacidade reguladora e “visa fundamentalmente distribuir vacinas para países de baixo e médio rendimento, tendo como objetivo central a distribuição de 2,2 a 2,5 mil milhões de doses de vacinas até 31 de dezembro de 2021”.
O especialista chamou à atenção para a farmacovigilância destas vacinas, referindo que “tornou-se absolutamente essencial introduzir um conjunto de alterações muito significativas no modo de funcionamento para aumentar a capacidade de resposta dos sistemas de farmacovigilância a esta nova situação”. Rogério Gaspar terminou mencionando que no dia 22 de fevereiro assistiu-se à primeira entrega de 600 mil vacinas no Gana, no dia 26 do mesmo mês ocorreu um desembarque similar na Costa do Marfim e que “a Guiné-Bissau é o único dos países africanos de língua oficial portuguesa que ainda se encontra em fase de conclusão de processos para acesso à plataforma COVAX, nomeadamente às vacinas de tecnologia AstraZeneca do Serum Institute da Índia”, concluiu.
Saiba mais sobre estes tópicos e assista à discussão no vídeo do webinar.