A afirmação é de Kamal Mansinho, expressa durante a sua intervenção no webinar dedicado à análise do “Impacto da COVID-19 nas organizações de saúde”, que teve lugar no dia 10 de julho. O encontro, moderado por Alexandre Lourenço, presidente da APAH, e por Paulo Ferrinho, professor do IHMT-NOVA, contou também com a participação de Leonardo Rolim Ferraz para explorar as dimensões da antecipação de cenários epidemiológicos e planeamento dos recursos, assim como partilhar a experiência da abordagem das organizações de saúde à pandemia nos países que representam.
Após uma breve caracterização do país e contextualização epidemiológica do surto de COVID-19 no Brasil, Leonardo Rolim Ferraz afirmou que num país continental com realidades económicas muito diferentes como o Brasil, “a pandemia é muito heterógenea tanto no número de casos como na capacidade regional de enfrentar a pandemia”, circunstâncias estas que “condicionam o impacto nas organizações de saúde”.
O médico intensivista e diretor da Unidade de Medicina Intensiva do Hospital Israelita Albert Einstein, no Brasil, Leonardo Rolim Ferraz partilhou a experiência do impacto da COVID-19 nesta rede de sistemas de saúde, composta por dois hospitais públicos e dois privados, distinguindo três fases: pé-pandemia, pandemia e a retoma.
De acordo com o especialista, face às notícias internacionais na fase pré-pandemia, “a nossa instituição teve tempo para se preparar de forma adequada para o surto de COVID-19”, cujo primeiro caso foi diagnosticado na unidade hospitalar da cidade de Morumdi, em São Paulo. As iniciativas que se sucederam “marcaram a trajectória da pandemia até ao presente”, contudo, a pandemia assume um impacto em vários domínios da saúde que se traduz por “múltiplas ondas”. “Além da onda inicial correspondente à infecção em si, “existem ondas secundárias devido à falta de acesso e de cuidados de outras doenças agudas e crónicas, assim como uma 4ª onda de maior impacto e mais prolongado, que está relacionada com o trauma psíquico, doenças mentais, o impacto económico relacionado com esta pandemia e o burnout”, explicou.
“O primeiro desafio foi o de aumentar o número de camas em terapia intensiva do adulto”
Na perspectiva da primeira onda, o médico intensivista afirmou que o primeiro desafio sentido surgiu com a necessidade de “aumentar a capacidade hospitalar, principalmente o número de camas na terapia intensiva do adulto”. Neste sentido, referiu ter sido feito “um grande esforço para a criação de estruturas adicionais físicas e provisórias”, como por exemplo “a construção de um hospital de campanha com 200 camas num estádio de futebol” e “a construção de infraestruturas permanentes com 100 camas adicionais para anexar os hospitais públicos da nossa rede”, que no seu conjunto permitiu “um aumento significativo de quase 4 vezes mais camas na terapia intensiva”. Por outro lado, a aquisição de “um sistema de pressão negativa portátil” possibilitou aumentar para 200 o número de quartos em pressão negativa na unidade hospitalar de Morumbi, “o que trouxe segurança para os doentes e sobretudo para os nossos colaboradores”.
Durante a pandemia houve uma forte aposta em novas tecnologias e adopção de plataformas digitais que permitiram melhorar a comunicação entre profissionais e a prestação de cuidados de saúde. Neste âmbito o especialista destacou o investimento na “expansão da plataforma de telemedicina EINSTEIN para mais de 40 locais” que possibilitou o acesso remoto de médicos a “mais de 400 camas com doentes COVID-19”. Igualmente importante foi a adopção de plataformas digitais para a partilha gratuita de protocolos e materiais educativos por todo o país (HOTLINE TELE COVID), assim como o desenvolvimento de simpósios virtuais para partilha de conhecimento, salientando-se que o simpósio de terapia intensiva, “contou com 13 mil inscritos e mais de 50 mil acessos ao conteúdo”.
Segundo Leonardo Rolim Ferraz, nesta pandemia os médicos passaram a ser “os protagonistas nos cuidados de saúde”. Se por um lado, são protagonistas no apoio ao doente internado, merecendo o “reconhecimento e celebração de todos os doentes que venceram a COVID-19 no nosso sistema, muito importante para os nossos colaboradores”, por outro são protagonistas da instituição e da especialidade, passando a ocupar “capa de revistas e jornais de maior circulação do país”.
O desafio de oferecer cuidados de saúde de forma sustentável e segura passa por “construir um fluxo segregado de atendimento de doentes COVID-19 e não-COVID-19 de forma simultânea”
Não obstante às conquistas atingidas na resposta aos doentes diretamente afetados pela COVID-19, importa referir a redução significativa do número de doentes com outras patologias que foram atendidos a nível hospitalar durante este período, que se repercute não só na gestão das complicações como também no impacto financeiro para a instituição. Na tentativa de ultrapassar o desafio de oferecer – de forma segura e sustentável – cuidados de saúde a outras patologias, o especialista afirma que o esforço do momento é o de “construir um fluxo segregado de atendimento de doentes COVID-19 e não-COVID-19 de forma simultânea”.
Como explicou, este conceito tem por base “a utilização universal de máscara e o controlo da temperatura à entrada” e “a segregação de áreas hospitalares”, permitindo desta forma “construir dois hospitais num só”, um processo que está em andamento há cerca de 45 dias. “Temos um hospital de fluxo regular para doentes não COVID-19 e um de fluxo exclusivo para doentes COVID-19”, fluxos estes divididos por andares e áreas absolutamente distintas de modo a abranger, em cada fluxo, todos os domínios da medicina. Adicionalmente, este sistema permite às famílias um maior acompanhamento dos doentes internados, através de “encontros virtuais ou presenciais acompanhados pela psicologia hospitalar”.
De acordo com Leonardo Rolim Ferraz isto só foi possível devido à comunicação muito intensa, na qual “todas as nossas referências médicas das várias especialidades produziram conteúdos que foram partilhados em todas as plataformas digitais, para passar uma mensagem de segurança e a possibilidade de retomar o atendimento seguro de doentes não COVID-19”.
Por último, sublinhou a importância da “plaforma de geração de dados contínua”, que possibilite a realização de “projeções e acompanhamento de doentes COVID-19 e não COVID-19, para que seja possível atender estas duas demandas de forma simultânea e segura”, concluiu.
“A experiência de alguns países constitui um importante papel de ensinamento na gestão do actual surto em curso e na preparação do período pós-confinamento”.
Após uma resenha sobre aquilo que tem sido o impacto da pandemia nas organizações de saúde a nível mundial e o tremendo desafio que é a sua gestão, o professor auxiliar de Clínica Tropical do IHMT-NOVA, Kamal Mansinho, afirmou que também em Portugal “a propagação da COVID-19 é desigual, e por isso condiciona diferentes padrões de sobrecarga regional do Sistema Nacional de Saúde e também diferentes taxas de letalidade”. Desta forma, considera que na fase de recuperação após confinamento “é essencial que as autoridades de saúde invistam num rigoroso sistema de vigilância apoiado no rastreio, na testagem e na avaliação dos contactos, para evitar estratégias disruptivas das medidas de confinamento prolongado de semanas e meses que temos à nossa frente quando a frequência da propagação se tornar mais expressiva”, elucidou.
Abordando a experiência no Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, especificamente no Hospital de Egas Moniz, onde é director do serviço de Infecciologia e Medicina Tropical, Kamal Mansinho referiu que “o impacto da COVID mudou profundamente o regime de atendimento dos doentes em todas as valências, particularmente nas valências do sector ambulatório que era assegurado através do Hospital de Dia, e alterou também de forma substancial a relevância dos sistemas tradicionais de informação e de gestão até então vigentes”.
Analisando as intervenções agendadas no sector ambulatório entre 6 de março e 30 de junho de 2020, em comparação com o período homólogo nos anos 2018 e 2019, constatou-se que “não houve uma diferença substancial no número total de consultas”, no entanto “o recurso às consultas não presenciais por via telefónica cresceu cerca de 9 e de 6 vezes face aos anos de 2018 e 2019, respetivamente”. Esta é uma questão que, na opinião do especialista, “merece uma reflexão e uma análise muito cuidada quer no que refere à preparação das nossas próprias infraestruturas na gestão e na segurança da informação quando esta consulta à distância é feita através do telemóvel”.
No que se refere aos internamentos, que inicialmente foram no Hospital de Egas Moniz, “a necessidade de garantir uma maior capacidade de resposta e optimizar recursos ditou a deslocação do internamento para o Hospital de São Francisco Xavier, onde concentrou os recursos em três pisos, totalizando 103 camas de internamento e 45 camas de unidade de cuidados intensivos”, detalhou.
Na perspectiva do infecciologista “esta crise tornou mais visível e exacerbou fragilidades já conhecidas do modelo organizativo e assistencial particularmente ao nível do serviço de urgência, relaçando a necessidade de um investimento adequado e coerente na força de trabalho e em infraestruturas, para assegurar os níveis adequados de quadros de profissionais de saúde treinados, com melhores condições de trabalho e de segurança, e tendo como prioridade a qualidade assistencial e a segurança”.
A gestão de recursos humanos profissionais nesta pandemia revelou que “os diretores de serviço e os gestores hospitalares enfrentam desafios complexos e simultâneos em diversos níveis”, salientando o especialista que além de todo este processo “estes tinham que gerir também as suas próprias circunstâncias e ansiedades, porque a decisão tomada nem sempre era sustentada no conhecimento completo sobre a situação”.
“A retoma da atividade normal reveste-se de uma complexidade particular”
“A literatura é escassa para nos informar sobre quais as estratégias que funcionaram melhor durante a pandemia, como devemos executá-las de maneira a retirar a maior eficiência possível e em que universo temporal elas devem ser aplicadas”. Por outro lado, Kamal Mansinho referiu que “esta etapa em que nos encontramos levanta problemas logísticos e de organização interna muito complexa”, ma medida em que “qualquer pequeno deslize tem dado origem a surtos nosocomiais com complicações quer ao nível dos recursos humanos quer ao nível da gestão de todo o porcesso”, acrescentou.
Durante a sua intervenção, o infecciologista ressalvou também a importância de não descurar os objetivos de desenvolvimento sustentado para 2030 nas regiões da União Europeia, destacando a importância de “aproveitar esta pausa para conceber e adoptar meios mais equitativos, inlcusivos e mais sustentáveis para prosseguir”, dando como exemplo os objectivos Nº 6: acesso a água potável e saneamento, Nº11: cidades e comunidades sustentáveis e Nº 3: saúde e bem-estar, como metas fundamentais no combate à pandemia.
O especialista advertiu ainda que “se as respostas à SARS-CoV-2 forem ad-hoc, subfinanciadas e sem visão e enquadramento com objectivos no longo prazo, as décadas de progresso para o desenvolvimento sustentado irão retroceder e continuaremos a ter uma atitude permanentemente reactiva em resposta a um problema que há muito tempo todos nós prevíamos e esperávamos que podia acontecer”.
Em jeito de nota final, Kamal Mansinho afirmou que perante “a magnitude e a escala das mudanças que o SARS-CoV-2 desencadeou é imperativo refletir não apenas na proporção desta crise de saúde, mas também conceber uma reestruturação consequente dos cuidados de saúde”, concluiu.
ADAPTT COVID-19: Ferramenta de apoio ao planeamento de sobrecarga
Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), aproveitou a temática para apresentar a plataforma ADAPTT Surge Planning Support Too – um instrumento global para o planeamento de necessidades para a resposta à COVID-19.
Desenvolvida pela APAH e pela Global Intelligent Technologies (GLINTT), em colaboração com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o principal objetivo desta ferramenta reside na realização de “previsão de recursos hospitalares necessários”, tanto no que respeita aos recursos materiais como aos humanos, possibilitando ainda “incorporar dados reais” e “estabelecer curvas de necessidade ao longo da evolução da epidemia”, o que capacita as organizações de saúde para “uma preparação de recursos de acordo com a essa evolução”, sublinhou Alexandre Lourenço.
Esta ferramenta, concebida “em várias línguas” e num formato Excel de modo a “permitir a sua utilização generalizada a nível global, sem problemas tecnológicos”, está disponível no site da OMS Região Europeia e no da OMS Global. Estas páginas colocam à disposição vários tutoriais para a utilização desta ferramenta, havendo ainda a possibilidade de realização de formações de apoio, disponibilizadas pela APAH.
Conheça as funcionalidades desta plataforma e saiba mais sobre os impactos da COVID-19 nos sistemas de saúde, assistindo à discussão destes tópicos no vídeo do webinar.