A forma usada quer pelos organismos celulares, quer pelos vírus que os infetam, para se perpetuarem na Natureza envolve, inevitavelmente, um passo em que os seus genomas (i.e., o seu material genético) é “copiado” num processo que, do ponto de vista técnico, se designa de replicação. Essa cópia, decorra ela numa das nossas células, numa das células de outro qualquer animal, planta, fungo, bactéria ou protozoário, é realizada por proteínas que o fazem de uma forma muito eficiente, e normalmente muito correta. Por isso mesmo, a ocorrência de erros (as chamadas mutações) é rara.
Esta regra geral não se aplica, todavia, à grande parte dos vírus conhecidos que infetam os vertebrados. De facto, em contraste com o que é observado nos organismos celulares, nos quais o material genético é invariavelmente uma/mais molécula(s) de DNA (ou ácido desoxirribonucleico), muitos destes vírus apresentam um genoma de RNA (ou ácido ribonucleico). À parte das diferenças estruturais e químicas que diferenciam o DNA do RNA, a cópia de moléculas de RNA é também diferente da que envolve moléculas de DNA. Tal deve-se, em parte, ao facto de que as enzimas que a executam, vulgarmente chamadas polimerases de RNA, cometerem um número de erros (i.e., introduzem mutações nas moléculas replicadas) muito superior ao número de erros cometidos pelas enzimas que replicam DNA.
A nossa capacidade de detetar estas mutações depende não só da taxa a que elas são geradas, mas, igualmente, das suas consequências biológicas. De uma forma muito simples (e nunca é assim tão simples…), se forem benéficas provavelmente vão tornar-se mais frequentes, enquanto que se forem deletérias tenderão a desaparecer, pois se são lesivas do ponto de vista biológico, será diminuta a probabilidade de as virmos a encontrar na descendência de quem as possui.
Neste contexto, a dispersão pandémica do vírus SARS-CoV-2, agente etiológico da COVID-19, tem sido acompanhada da geração de muitas variantes virais ligeiramente diferentes umas das outras. Uma vez que este vírus, tal como todos os do seu grupo (betacoronavírus) possui um genoma de RNA e é replicado por enzimas que cometem erros, será, pelo menos a priori, igualmente grande o número de variantes virais geradas diariamente, um pouco por todo o lado, especialmente se tivermos em conta o enorme número de pessoas que este vírus já infetou (mais de 136 milhões no início de abril de 2021). Assim, encontrar novas variantes de SARS-CoV-2, caracterizadas por conjuntos de mutações que ou partilham, ou as distinguem entre si, não só é normal como expectável. Porque o esforço despendido para caracterizar este vírus em tempo real tem sido enorme, tornou-se igualmente possível estudar a sua distribuição ao longo do tempo e do espaço, tal como pode ser consultado através deste link.
Assim, como acima se sugere, a distribuição destas variantes virais tende a seguir regras básicas, ditadas, em grande parte (embora nem sempre), pela seleção natural. Não deveremos esquecer que nem todas as variantes virais são equivalentes. Numas, por exemplo, a presença de certas mutações não altera as suas características (estas designam-se de neutras pois não se traduzem num efeito visível), enquanto outras revelam-se nefastas para o vírus e tendem a desaparecer. Igualmente, existem mutações que são benéficas para o SARS-CoV-2. Tratando-se de um vírus patogénico para os humanos, estas mutações podem causar-nos sérios problemas se contribuírem, por exemplo, para tornar o vírus mais transmissível ou mais virulento (i.e. capaz de causar doença mais grave), se aumentarem a sua resistência no ar ou nas superfícies onde se depositam, se o tornam resistente aos fármacos usados para limitar a sua replicação, ou se lhe permitirem escapar à resposta que o nosso sistema imune desenvolve, seja ela consequência de uma infeção natural ou da vacinação. Ainda que estas mutações possam ocorrer de forma aleatória e, assim, afetar qualquer região do genoma viral, todas as que se localizarem na secção que determina a síntese da proteína viral S revestem-se de particular interesse. Tal deve-se ao facto de esta proteína, que decora a superfície das partículas virais (Fig. 1), ser não só importante para permitir ao vírus entrar nas nossas células, mas igualmente o principal alvo para a resposta que o nosso sistema imunitário vai desencadear contra este vírus. Esta traduz-se, maioritariamente, na produção de anticorpos, muitos dos quais são capazes de neutralizar o SARS-CoV-2. Assim sendo, se a proteína S variar, não só o vírus pode tornar-se mais eficiente na infeção das nossas células (o que contribui para aumentar a sua transmissibilidade), como pode escapar ao “ataque” desencadeado pelo nosso sistema imunitário.
Porque o número de variantes de SARS-CoV-2 identificadas pelos estudos genéticos que têm sido realizados tem vindo a aumentar muito rapidamente e é já bastante grande, em finais de 2020 foi proposto um sistema para as designar (consulte o artigo científico em causa aqui) baseado num conjunto de regras que nos permitem diferencia-las usando um conjunto de letras e números (ex: A.1.2.1 ou B.1.3.5). De entre todas as variantes virais até agora detetadas, três delas têm sido alvo de especial atenção. Essas variantes (também designadas linhagens), conhecidas pelos nomes técnicos de B.1.1.7, B.1.351 (ou 501Y.V2) e B.1.1.28.1 (ou P.1) correspondem às que mais vulgarmente conhecemos como as variantes Inglesa, Sul-Africana e Brasileira (também designada variante de Manaus), respetivamente (Fig. 2).
Cada uma destas três variantes é caracterizada por uma série de mutações que as identificam. Por exemplo, a variante Inglesa, inicialmente detetada na Grã-Bretanha em meados de fevereiro de 2020, apresenta seis mutações que alteram pontualmente aminoácidos na proteína S. Duas destas mutações, que se traduzem em alterações na proteína S do SARS-CoV-2 e são designadas N501Y (que indica que a asparagina (N) da posição 501 foi substituída por uma tirosina (Y)) e P681H (que indica que na posição 681, uma prolina (P) foi substituída por uma histidina (H)) são preocupantes pois estão associadas a uma maior transmissibilidade desta variante viral. Tal facto permitiu-lhe dispersar-se rapidamente, ao ponto de em países como Portugal, se ter tornado muito rapidamente na variante viral dominante. Por outro lado, de entre as mutações que caracterizam a estirpe Sul-Africana, detetada pela primeira vez na África do Sul no início de outubro de 2020, uma delas (a mutação N501Y) é partilhada com a variante Inglesa. O conjunto de mutações que caracterizam esta variante da África do Sul, para além de contribuírem para aumentar a sua transmissão, contribuem igualmente para aumentar a sua capacidade de escapar a diferentes classes de anticorpos, incluindo os que são encontrados no plasma de indivíduos que recuperaram de uma infeção pelo SARS-CoV-2 (aceda a uma referência bibliográfica aqui). O mesmo parece ser válido para a variante Brasileira, pela primeira vez detetada em dezembro de 2020, a qual é caracterizada por um conjunto de mutações nas quais se destacam a E484K, a N501Y e a K417T (tal como se descreve aqui). O que este tipo de observações evidencia, é a possibilidade de, por um lado, estas variantes se tornarem muito frequentes devido à sua maior transmissibilidade, e por outro, tornar possível a ocorrência de reinfeções. Estas podem ocorrer quer em indivíduos que tenham recuperado de um diagnóstico positivo de COVID-19, quer eventualmente naqueles que já tenham sido vacinados, comprometendo, assim, a eficácia das vacinas disponíveis atualmente. Assim sendo, é imperativo controlar a sua dispersão e, para tal, manter a vigilância que permite a sua deteção atempada e, por outro, continuarmos a respeitar as regras de conduta que nos permitem limitar a disseminação deste vírus e que incluem uso de máscara, afastamento social, higienização regular das mãos, respeito pela etiqueta respiratória.
Autor: Comissão de Saúde Ocupacional, Biossegurança e Qualidade (CoSOBQ)
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